31 outubro 2010

baile a fantasia

teus medos tocam vagarosamente
minha
pele roçam meus
cabelos sentem
arrepiados
o hálito
da tua boca quente

se ousasse
sugar teus
fluxos
de saliva
minha
língua
bailando
com a tua língua
uma lambada
num beijo

me lamberia
em labaredas
de corpo
inteiro
me entregaria
à fogueira santa
dos teus

pecados

divinos

os sinos os sins
os sinais
que teu corpo
oferece

e recusava
fria


mas hoje

com a mais pura e sincera
alegria

meu ventre vai

te receber

com

ânsias

de filia.


29 outubro 2010

manteiga derretida

derretendo em lágrimas. quanto mais elásticas eram as pernas mais suave iam magricelas como na infância.

inventava felicidades clandestinas. mas desde mocinha a estranhez dos estranhos lhe causava uma espécie de abatimento na boca. o rosto se fechado tomado por timidez ,não sorria. mas não era tímida, ao contrário, sentia-se capaz de tudo.

todas as palmas e todos voos e seus vexames seriam dela e de sua natureza extravagante, não fosse o ressabiamento, uma intuição a respeito do medíocre humano, que lhe permitia parecer normal, quieta, brusca. para ela era como se o mudo a lançasse em cena sem ensaios. e isso era tão enorme que não sabia como dizer nem quando por isso aos poucos foi recolhendo os ombros disfarçando a beleza diminuindo o próprio brilho e inteligência até se fundir aos demais, a massa cinzenta e apaática.


ela seria como uma delicada flor em meio aos espinhosos cactos ressequidos daquela terra seca e avermelhado fosco feito talho de sangue.

seu corpo saudável tomava mostruosa formosura e logo seus cabelos compridos brilhando lustra não passariam incólumes seu corpo morno e ao mesmo tempo receptivo andava selvagem em suas matas virgens e espinhosas, as que só ela conhecia as trilhas.

escolheu prontamente a postura cômoda do esconderijo. embrenhada no mato, não devia satisfação a ninguém. banhando-se nas cascatinhas, nos poções d´ágia roubando manga, goiaba e cachos de bananinha ouro.

mas queria ser feliz, em outros universos, como queria. só não sabia isso que queria o que era. as mãos se fechando em ardores de corpo a se abrir pétala por pétala na ansiedade claustrofóbica de chegar a um gozo muito além dos cinco minutos de sorvete., de fruta lambida, de língua de menino dentro da sua boca.

queria o gozo calmo de estar queita e compreender. mas não podia ser ela mesma, porque ela não compreendia. tinha ânsias por chupar todos os dedos, todos os cigarrostos todas as garrafas as mulheres todos os bombons todos os licores de macho matar a sede de viver como quem procura algo, uma ramo, uma galho de salvação, que há muito já deveria ter crescido dentro.

mesmo que de mentirinha, era divertido se divertir. como quem esquece o assunto porque já se tornou parte dele, suas misérias eram íntimas companheiras, então vivia e era feliz. ás vezes pegava bicho-de-pé, as vezes, cocheira braba...

certezas não tinha. apenas as que vieram desde pequena e foram ficando esfiapadas como os vasos de louça da sua avó, tão lascados. tentando sempre agradar ao pai recebendo com parcimonia o ciúme que disfarçava de proteção. e da mãe, aceitava a loucura. o cheiro de sarro e fumo.

cinco minutos de sorvete. gela a língua arrepia o pescoço escorre no pescoço e então acaba. espumava pela boca pois pretendia se safar pela força de seu espírito, através da perspicácia que lhe ensinaram as agrúrias, a sobreviver às nuvens fofas que não se importam com suas dores. ela no final quaquaraquaquá...e dormiria embaixo do pé de cedro sem se importar com as formigas e vinham beliscar suas bochechas.

sairia ilesa das recorrências da sua vida. mas apesar de ensaiar respostas sagazes a altura de qualquer um, não se saia bem falar com os outros. não adiantava espernear. talvez um dia pudesse abrir a boca sem parecer ridícula, talvez um dia sua beleza fosse tão maior que qualquer maldade e brilharia como a rainha que era, como a rainha da paz.

quem era ela afinal? por que era capaz de tanto e de tanto pudor em seus sonhos e tudo se deteriorava horrivelmente quando a realidade vinha lhe passar a perna, quando a vida vinha lhe cuspir na cara?

na superfície da língua as palavras escorriam quase em pensamento alto a testa franzida demais para uma garotinha de onze anos. andava para lá e para cá por dentro se oprimia como se faltasse fôlego à pálida alegria. fatiga branca, amarelada, fatiga de ser bem mulher, os peitinhos despontavam em caroço dolorido e o corpo enroliçando.

recolhida em seus ombros, entorpecia a mente com livros, um inventices. tremia com batidas fortes de coração quando o touro cobria a vaca e a cadela lhe deixava passarem a língua por vários machos.

por aqueles dias já pretendia cometer um crime. qualquer um. e conhecer homem. abnegou cedo a polpa da fruta mais doce. chupava escondida e só mangas verdes embaixo da mangueira. e espetava os dedos nas rosas só pra ver cravados fundo e esfolados os dedos como os estilhaços da sua vida. e chupava o sangue com gosto e passava horas sozinha, como se não existisse, tão linda, uma margaridinha selvagem que ninguém colhia, porque se escondia nas ramagens ruins.


caiu e quebrou. lembrava muito bem a manhã fria da tragédia. o retrato de vidro caiu da mão da criada. a mãe veio feito ave de rapina pra cima das duas. ela apontou com os olhos pra criada que já esmiuçava um choro desculposo, a voz da mãe estalou feito chicote tamanha era sua fúria.

a foto adornada à vidro, da família toda quando haviam passado férias em praia chiques comendo queijo e batata frita. os pais lhe deram a ela e aos irmãos todo o sorvete que quiriam.

o irmão mais novo era tão lindo seu pai sua mãe bonita seu pai às vezes desaparecia seu irmão tão lindo tão apaixonada por ele sua mãe ainda bonita mas com olhos assustadoramente pretos diferente dos olhos do seu pai que eram verdes e calmos.

o que mais podia se lembrar eram os sapatos de sua mãe, vermelhos em volta como se fosse um animal exalando fumaça pelo hospital os enfermeiros a afastavam mas suas unhas compridas feriam braços, rostos, pescoços. acendia um cigarro berrrava com as enfermeiras parecia louca repetia sempre “seus canalhas desgraçados” um empurra-empurra até que o pai surgiu rindo. todo desabotoado. de barba crescida e um sorriso amanhecido na cara. então tudo parou. tão mole. as pernas moles os rostos derretendo. não sabia bem porque mas continuou sentada as pernas elásticas pulsando até tudo amolecer quentinho quase delicioso o líquido amarelo escorrendo morno dentro o coração acelerado vibrando de prazer mas o rosto tranqüilo quente pelas pernas amarelo morno pingando no chão e depois o tapa.


derretendo em lágrimas.


sua mãe lhe esbofeteou num estrondo desistiu de arranhar os enfermeiros e fez com que todos voltassem seus olhos para a cena principal e sua pequena protagonista: o tapa na cara. depois outro . três, vários no corpo nos braços quando pegou furiosa os sapatos para lhe cravar os saltos na carne o pai então a esmurrou bem no queixo na frente de uma platéia atônita. ta pegou no colo seu cheiro era de perfume doce cigarro todo o corredor do hospital lhe pareceu sombrio a enfermeira veio impropriamente anunciar que o irmão havia falecido. sua mãe desmaiada só uma semana depois soube o que havia acontecido.


sua beleza era estranha. e quanto mais estranha mais legítima e vigorosa. seu pai tão lindo charmoso e violento. sua mãe era a bruxa malvada rica que matou o irmãozinho porque não o levava para o hospital, sua avó dizia. ela se deitava na cama e sofria. sua avó paterna não tinha marido dirigia carro e odiava todo mundo exceto ela. exceto ela que era o amor da sua vida. não queria mais que ela morasse com sua mãe, aquela mulher. aquela cadela. dizia também que ela era uma cadelinha quando brincava de bola na rua escondido com os meninos correndo descalço sujando a testa de terra. por que não o levou para o hospital? por quê? por que não o levou antes para o hospital? vinha a avó puxar seus cabelos louros compridos até dentro do castelo. os meninos da rua não riam, como os da escola.

não. eles ficavam parados acompanhando com os olhos arregalados um deles, um dia, até veio lhe socorrer. trouxe um chiclete de melancia, seu único tesouro, e uma margarida apanhada do próprio jardim da sua avó e ela lhe observou isso, ele corou e teria lhe dado um beijo se. mas ela não pulou a janela aquele dia. jamais pulou. jamais pularia. mesmo depois, muito tempo depois.

também tinha seu tio bonzinho e lindo que lhe acariciava a cabeça dizendo que foi a vontade de deus que levou seu irmãozinho. ele a punha no colo e ela queria sempre sentar em seu colo. sonhava beijos. queria. no colo dele sentia suas pernas quentinhas. não era uma santa.

então depois da mãe vinha deus na listinha negra. e depois os homens. e depois os hospitais e depois o irmão que brigavam tanto que ela

se derretia em lágrimas. em segredo. porque não trocaria mais sua vida pelo quarto de brinquedos como disse uma vez. não deusinho, era mentira. mentira. eu não troco, não troco meu irmão pelo quarto de brinquedos, juro que era mentira! devolve meu irmão, me devolve ele, deusinho, que eu vou ser sempre boa pra sempre boa boazinha. rezava em segredo, rezava quando a casa inteira estava dormindo somente ela sempre acordada a vida inteira acordada como a mãe mais tarde teria olheiras roxinhas delicadas e aquele abatimento da boca que só a deixava mais triste e bonita.



27 outubro 2010

chantilly com morango

aposto que perdeu seus óculos
e vai ficar por todo o domingo
arrastando as pesadas patas
mastodontes
entre a geladeira e o freezer

checando as listas.

aposto que não gosta dos convidados
porque não pode coçar as próprias
costas nem vai conseguir ler um
livro ficará sonsa
quando apagarem a
velinha o fio de cabelo
grudado nas costas coçando ela não vai
comentar com ninguém mas vai escondida
tirar a blusa
e se esfregar
na parede
uivando
um riso.

25 outubro 2010

Loteria da Babilina

a Chave que te abre
fragmento por pedaço cada
melodia cada traço
da tua voz

é um beijo desperto

além do gesto
até nas fantasias em que vinhas
próxima da minha falta de efeito
do meu turbilhão lacrimejante
e estreito

áspero enquanto a política
corre atrás do
ladrão
e o dia não muda nem a paisagem
eu sigo
sem rumo
sem voto me volto para
distrações alternadas
e alterada me faço
vi-ver à multidão
e os turbilhões
das avenidas
peixe-urbano
mergulho
no dióxido
da vida

Romance auto-Astral

degluto engulo e vomito
toda semente de homem todo medo da solidão é
meu


abro minhas pernas para dar
a luz ao
dia
o meu rebento
nasce envolto em brumas
que o Ar dissipa

minhas asas voam em direção
às trevas infinitas
minhas luvas são estreladas
e a água que bebo
é de Iansã

as chamas
vivas em meu ventre
é o Fogo, o Sol, da
Vida
da gruta
escura que esconde
anjos criam
raízes em
meu corpo de pó
e de terra
o planeta
em que pisas
e me olha a lua
que não brilha


eu sou a Mãe do
Filho
eu sou a sacerdotisa
do Pai
humildimente
me curvo
me humilho
e jorro
meu líquido
nos mistérios
da vida

dou-te de beber
do cálice profano
da minha
virilha
te embreago
te enlaço
te Inicio
na
Suprema
Ciência
do bem,
meu bem,
e do mal
nosso
romance
astral

23 outubro 2010

Le Volcan

consumia-se num desejo atordoante de encontrar aquele pedaço de fita, afinal. era quase dia nessas horas sentia-se encurralado novamente teria de ir olhar como estão as crianças dormir um pouco no sofá esquecido da televisão caso não encontrasse. não poderia fazer muito suspirou calçou os chinelos os pássaros cantavam.

semanas antes recebeu um pacote pequeno contendo apenas um bilhete e uma espécie de bracelete. sabia que algo mais íngreme se preparava para sua vida. coisas horríveis vinham acontecendo sem que pudesse impedir. começou no sábado. não, era sexta-feira e chovia. alguns amigos ainda bebiam quase uma da manhã e seus olhos nem sequer procurariam mais por companhia tamanho o sono que era incapaz de dormir os olhos não se pregavam pálpebra a pálpebra. estavam bêbados evidentemente.

o alívio que o bracelete lhe trazia agora a faria viver aventuras a qualquer momento. obscuras, mas completamente dela. respiravam um ar denso de expectativas. todos pareciam se divertir as moças riam copiosas e folgazãs.

duas mulheres apareceram quase três da manhã dizendo que eu cozinhava bem o copo cheio de licor de cerejas que acreditavam ser algo como sobremesa. provaram meu molho rosé com muito vinho e queijo e paixão. é o sono misturado a falta de. casaram-se por tesão num tempo em que o tesão já tinha acabado restara os amigos que foram sugados às espensas e finalmente exaurida toda relação salutar houve surtos, abruptas partidas fugindo sempre daqules momentos em que você enxerga a pessoa como ela é, sem as mistificações da paixão e então se sente metade desamparado e metade entediado.

confirme iam envelhecendo os esforços não faziam mais sentido. concluiu que a fita havia sido roubada e saiu pra caminhar sem ter conseguido dormir, sem ter conseguido se alimentar há dias. há dias! ela não saia sem o bracelete. estava novamente apaixonada. estava novamente com seus delírios de adúltera irrecuperável. fazendo sofrer a família os animais com crises de chicote e ciúmes não admitia que estava ficando velha e que toda cena protagonizada agonizada, principalmente, por ela era ridícula aos olhos dos rapazes se afastavam alguns -até- faziam amor escondido com minha filha.

20 outubro 2010

Oz

se até as sílabas se insinuam
por entre a língua bifurcada
como um murmurio se soasse doce
e melífluo

voz rouca de muitos assovios
e madrugada profunda como a porta
do precipício

se você soubesse o eco de suas palavras voam
em anos luz
luminosos feiches que acendem apagam
cigarros nas xícaras usadas


sua v
o
z
é toda você enfeitada

forma desenhos esquálidos
em geometrias dimensionalizadas
além das medidas
exatas

voz de ousar pousos
e revoadas
repousa as mãos
nas coxas
macias como nas manhãs em que nada
em segredo
no céu
ou no
rio pelada

14 outubro 2010

Ox

sabe-se lá sábado eu vou encontrar
a fresta que dá pro oposto disso
atravessar o avesso desse
enigma

as túnicas sagradas de abrahão serão lavadas na próxima primavera
os ventos as levarão
para o mar

teimo em ler suas considerações principalmente quando o amanhã se esconde nos traços brutos desses marginais de súbito
o paletó enrosca nos muros em nós que fazemos pra disfarçar
abruptos no peito os soluços parece que tudo
anda direito

pro abismo final
somente seu
sinal fechado eu abro entro logo noto seus esforços arrumando a sala espero poder te explicar mas vou viajar pra aquela montanha que a gente via na capa do caderno
correremos como
búfalos selvagens

o beijo que não deste na semana passada ainda amarga a tua boca

se já amou dois homens
ao mesmo tempo amou
suas mulheres se não entende
como o amor se prende
ao outro

o seu coração é leve

se dormiu ao vento na relva
escura
se à noite ao lago
te deitas nua
só pra te banhares nos reflexos
da lua

seu coração de neve

se corria criança na chuva mansa andava
de bicicleta e se
de repente não sabe mais o que fazer
com as mãos se não se lembra
da nada melhor
para dizer ao seus
sonhos despe
daçados

se lá se foram bons amigos por cinismo
se quis ligar e -não sei -mudou de idéia
se já se despediu
quendo ficar mais seus motivos não
correspondiam
a alegria que de fato
e sentia ao mesmo tempo em que ele
tocando a sua mão
pedia
o beijo que não deste

13 outubro 2010

Retratos& Paisagens parte I

aposta nas mangas da camisa no perfume dos homens cheios de calor e cerveja
espera alguém deve agarrá-la fecha os olhos flutua no rio se enrosca nas pernas dele
algas fazem cócegas nas plantas dos pés pisa com cuidado à margem verde. olhos verdes
ou seriam azuis? ou tanto faz?

as meninas descarregam sacolas, os rapazes as malas, colchões, preparavam aparelhos para as fotografias. uma fotografava a outra. Ela desceu de óculos escuros e os lábios rasgados de frio que não sorriam. como se já sentisse saudade ou como se fosse se arrepender. o loiro desagradável que não falava muito com ela no carro acendeu a churrasqueira e duas garotas afetadas foram derreter seus queijos com ele.

pensou em como vinha de uma vez avalanche e até nos deixava triste esssa euforia toda de abrirem garrafas e mais garrafas espumosas de cerveja bem gelada no calor que começava a brotar do céu e da terra e todos muito animados ouvindo rádio
as moças saudáveis e rosadas. de onde vinham elas, que não se continham?

se luzisse apenas uma lua alaranjada maravilhosa e fizesse um calor sedento, tudo bem, mas havia brisa e perfume no ar. o entardecer prometia uma noite esplêndida. a primavera em cada pedaço de terra úmida criava uma completa intimidade e falta de comprometimento entre nós, total. livre de ruídos. só dependia delas serem mais divertidas. estávamos podre de cansados.

as senhoritas com sua selvageia inocente e prática colocaram logo biquinis e fizeram festinhas na água enquanto tinha de me preocupar com, por exemplo, a churrasqueira e a bebida que de vez enquanto atirava com sarcasmo alegre e divertido para cada um. uma lata estupidamente.
gelada. nada poderia ser mais suave. mais sufocante e demilidor. enquanto as outras se deleitavam a luz do sol quente ela se aproximou furtiva de mim e disse: amanhã, vou nadar contigo no rio. e sorriu. sorriso de sol.

ele finalmente se afastou e eu a vi nua no rio. pedaço por pedaço cada patrimônio e construção antiga dos meus complexos adaptativos foram ruindo como alguém que divide um segredo letal por pura idiotice. era óbvio que não me queria mais ali tentando tapá-la inutilmente, comecei a me sentir patético por ele. e resolvi dar o fora.

era simples a atração que sentia: por uns mais outros meros animais se acomodando ao clima. ela me achou antipático mas as mulheres são engraçadas assim mesmo. sorriem e seduzem e se não correspondemos automaticamente nos detestam só para seguida nos desejarem com mais força quase contra sua vontade orgulhosa.

rejeitei suas insinuações tolas e provisórias no carro só para tornar o sabor da nossa brincadeira marota mais gustativo. devia agradecer meu pudor precavido que impediu desagradáveis inferencias entre ela, o namorado e o outro casalzinho que viajava conosco no carro.

escureceu e começou a ventar mais forte. as pernas femininas se movimentavam com alvoroço para o banheiro. banhos, duchas, cremes para pele. perfumes doces e enjoativos. duas, três garotas entravam no banheiro de uma vez impossível não se esfregarem acidentalmente ali., pensei, caminhando sobre o aguaceiro que vazava pela fresta debaixo da porta saiam cheirosas e dengosas. a pele mais sensivel e delicada que o sol lambeu desde as duas da tarde. comiam bebiam e voltavam para seus jogos de carta, para o violão, para o bilhar. algumas conversavam no píer. aos poucos os risos diminuíam e as luzes foram se apagando. o casarão abrigava a todos com esmero e delicadeza os empregados limpavam tudo em silêncio -eram quase invisíveis. tínhamos a devida impressão de que tudo era permitido porque não ficavam entre nós. limpavam e saiam. para entrar, pediam permissão através do sistema de segurança. sabíamos de antemão tudo que acontecia lá fora.

e por causa do vento forte e a noite alta os barcos desamarrados foram conduzidos a um outro lado, inatingível. perdidos para sempre. os donos não se preocuparam muito, era como se tivessem apenas perdido um pedaço de papel com o endereço dos museus de londres relacionados. trabalho cuidadoso, mas sem importância. nada que não pudessem obter de novo.
havia uma quantidade enorme de diferentes tipos de insetos, rãs e sapos. a vida pupulava era difícil chegar até o banheiro lá fora pois tínhamos que atravessar a ventania e a cusparada de besouros na cara. na piscina alguns sapos se deliciavam na água até estendiam o convite, pateando as perninhas num nado sincronizado sorrindo com a boca enorme: venham , humanos, juntem-se a nós, os felizes! venham, mas tragam o copo cheio até derramar de alegria!

os rapazes estabeleceram-se em grupos maiores ou menores apenas uns poucos indivíduos podiam transitar entre os dois mundos, as duas mesas, dois grupos ou mais. eram os intangiveis. mais por incapacidade de acostumar-me com o que quer que seja do que destreza social ia bebericando aqui ou ali sentia uma tontura gostosa e vontade de terminar a noite dormirndo na grama úmida. sem que ninguém viesse velar por mim. mas ela me sacudia, quase sem nenhuma força o rosto pálido já era quase dia.

caminhamos em volta do rio esperando amanhacer ela sentia com as pernas mornas a água invadir seus joelhos ela entrava mais fundo a água subia pelas pernas ela se arrepiou na blusa os olhos tinham um certo brilho metalizado como a casca de um inseto. era um prisma. uma futilidade qualquer.

subimos pelas rochas. acontece que sabíamos do nosso descaso pelo magnetismo que nos mantinha ali calados caminhando descalsos sobre rochas frias. apenas nos preferimos . não precisava se transformar em constrangimento a leveza dos nossos dias juntos ao léu. pior que o transtorno que sentia no estômago quando outro cara se aproximava dela me empedia de comer, às vezes, no entanto, gostava do conversa com o namorado. cara gentil. estúpido. do tipo que não...?

depois de alguns tragos no cigarro dela entupido de fumaça me joguei na rede enquanto me balançava suavemente acordado olhava satisfeito para os macaquinhos na água ninguém parecia saber do nosso passeio ela se aproximou com força apertou meus dedos do pé. uma a um. com as mãos fartas de mim dizendo levanta, Pedro. quase em silêncio. me olhando sorria levanta daí com a cara de sapeca. vontade de agarrá-la, no banheiro. fazer cócegas . puxar seus cabelos decifrar cada pedaço dos seus segredinhos pérfidos. quantos mais? fiquei imóvel. ela chegou mais perto. levanta logo daí, vem nadar! vem! deslizou sua mão por baixo da rede pela minha bermuda eu a puxei pra mim e a deixei assim presa com as pernas pra cima. aos poucos todos foram se dando conta e apreciando a cena e riam , exceto o namorado que me encarava lúgubre e calado do outro lado do pilar da varanda. eu ria com tranquilidade, podia deixá-la assim para sempre. ela gritou solta! apertei-a com mais força só por prazer depois soltei violentamente seu corpo ela flutuou no ar jogou o cabelão para trás e se aprumou. estava muito vermelha.

bebíamos na mesma lata, faz tempo. era boa no bilhar. madrugada adentro o vento tinha dado tregua. as luzes iam se apagando. os risos diminuindo. fez que ia voltou furtiva na ponta dos pés. pra mim. então adentramos o estranho que é a madrugada. dos loucos e patifes insones. fumando aquele cigarro bebendo cerveja morna. jorrando energia um para o outro. apenas uma chama cambaleante de vela acesa. Ni se juntou a nós. puxou uma cadeira.

desta vez, ela estava livre. aqui fora conosco e com os insetos. ela era minha, quase toda.
- tá todo meio que dormindo, riu. vamos fazer uma fogueira.
- nós três! sugeriu ela como uma criança sugere uma aventura. levantou-se como se tivesse acordado de repente de um pesadelo doce, arumou a calça fechou a blusa que me oferecia seus seios e foi procurar lenha. na mata. Ni foi pelo outro lado, mamando um rum. uivando pra lua. ao encalço dela. o namorado dormia. todo mundo quase dormia. só nós três vagávamos sozinhos à procura de gravetos molhados na mata próxima ao rio, entre as pedras completamente excitados e levemente bêbados descemos pela trilha, nos livramos de alguns espinhos, dos fantasmas da casa de veraneio e, finalmente, da grama encharcada. no coração selvagem da mata, achamos um lugar todo nosso. Ni trouxe o violão que arranhava baixinho pra lua. estávamos todos apaixonados ao mesmo tempo.


08 outubro 2010

de passo leve para não acordar o dia

de tanta escuridão nosso carro parecia um submarino mergulhado dentro da noite
sem estrelas ria
de histeria
não há jeito para tanto escuro
esconderijo

cale deixe a boca imóvel e muda
o penteado dos cabelos vai enfiando os dedos embaixo
da minha
grama plantando-se na terra. os ombros curvos para dentro

falamos de sexo como bons velhos amigos. falamos
do que tememos ousar
fumar cigarro com os vidros
fechados. ela toma um gole de pilulas perde as chaves alguém grita

cale a boca deixe meu corpo esticado...na noite
eu a olho cada vez mais
a compreendo menos
espero quinta-feira chegar
para postar cartas
receber seus postais
esperar tua resposta
um único olhar
que me dissesse tudo
que eu não posso
perguntar

aos poucos os pedaços
dos nossos sonhos acordados juntos vão se misturar
ao cheiro de cana fermentada
que sai
da garganta
das vicinais

provocações

a vida é longa. ele não sabe que ela pensa que é curta. ele liga ela não sabe o que ele pensa. apenas pensam em si
bemol.

esse nó enojado de amor começou de surpresa às pressas mas ninguém precisava se estrepar. com cuidado vão sondando um ao outro um mundo estranho nocivo cheio de novidades.
as mãos quentes o rosto faz questão de rir sozinho à toa notam-se notívagos no meio da música favorita dela. não sabe sequer seu endereço. sequer o nome, da rua por onde descem trôpegos e meio depravados sobem pelos galhos estreitos de uma árvore antiga arrancam os uivos que a noite guarda.

convida a menina para o bar mais próximo encontra outra, uma amiga, e diz ainda diz que vai se apaixonar um dia ela pedirá em suplica em silêncio num revoar de ciscos que os dias passem mais devagar; não precisa mais ver meus discos já sabia que não voltaria a ligar exceto por algum equívoco.

por que a gente não pode amar a grama macia do vizinho?
por que a gente não pode rir sozinho?
por que só você faz sentido o vestido
de cigana lendo
o fundo de um copo de vidro diluindo
o seu pão no meu espumoso
vinho?

fuga ao tema

obrigado por me olhar
seu orgulho me disfarça de ventuinha faço de conta que sei contar piada no bar um assunto sempre leva
ao sono
temo que minhas mãos caiam pedaço por
abraços partidas
ao meio meus vestígios serão
encontrados
nos silêncios abissais da noite
em todos os rostos em riste todas
as mulheres solitárias que só se casaram de lábios
abertos para matar a sede

ela vai
sempre morrer ao lado da lei não
fugirá contigo
mesmo que os pássaros que voam dentro sejam tão azuis
eles não podem te
carregar pra longe
da dor de
sonhar

saberá tocar as cordas duras do violino quando a tempestade arrebentar as janelas as grades
as portas serão crepitadas ao som do fogo a fúria do coração escuro entrará pela janela arrebentando árvores
destroçando
planos para
o fim
de semana

ela escolhe os cabelos compridos
serão ceifados
ergue bem alto seus olhos são miopes miram as estrelas que poderiam poderiam...

grita aleluia enquanto as crianças fracas morrem esmagadas de fome

bloco de notas

feliz. tonto ao ponto de fazer rolinhos de papel com os dedos
apagar a bituca de cigarro na ponta do sapato e sair pra parar de pensar
em mim
atrasado

e correndo o terrível risco de perder a pressa
correntes elétricas passam por mim relógio xícara jornal
a jornada até

assino pego vidro bebo descarto gelado esqueço
que não passarei daqui a culpa é sua se esquece
de volta à casa estou mais confortável que nunca
respondo mensagens

faço as malas consigo
lembrar a tempo que vou viajar
fazer compras pra passar o fim de semana
inteiro
com a geladeira cheia
de segredos
ela não diz mais
porque quer ser capa da revista
tudo que ela precisa é se olhar fazer dizer pensar passar
o cartão na tabacaria
para mudar a minha vida
de lugar
comum a qualquer ensejo
em seu lugar
eu me daria um beijo com cheiro de
amanhã
serei apenas o que pareço ser

alguém feliz assim: cansado
de você e de mim

06 outubro 2010

das férias pagas pelo sogro Cena I

existem realidades distintas agora percebe nitidamente deitado na areia.
o corpo espalhado de sono ao sol lascante.
calor à flor da pele.

na primeira e mais óbvia ele é apenas um pobre diabo rico que nada consegiu na vida, absolutamente nada, todos os planos naufragados. a faculdade inconclusa. o matrimônio afogado na areia há anos não sabe o que é lutar pela vida. nunca soube. mas acha muito engraçado porque essa história de macaco, praia, jornal... todos reconhecem sua excepcional capacidade de apreciar, porém, notadamente, não possui (t)alento algum, tampouco adquiriu com o vexame de sua existência aquela tenacidade e perspicácia capaz de desculpar aos medíocres sucessos.
Ele sempre se vale de alguma esperança insípida nas madrugadas difíceis, nas poucas que passa com a família. promete rever seus hábitos insalubres e no outro dia está de volta ao bar aos lugares malditos.

sua mulher grita, quebra os móveis cospe uísque diz que ele prefere ser o eterno perdedor a se dar o trabalho de tentar qualquer ridículo, qualquer coisa para a qual não possua boa desenvoltura. você não presta pra nada. John Malcovich.

perde o foco como quem [sempre] esquece os óculos no táxi.

em outra realidade, paralela a todas, ele é apenas um corpo estandido na praia sentido prazer orgânico. o prazer da saúde gozada em férias. a brisa do mar do Caribe. eterno como o instante, ele se sente pleno ao sol. quando não adoece. raramente adoece. a realidade é que é um homem jovem e voraz. ama as mulheres e elas não resistem sua beleza física aliada ao poder de persuasão do desprezo que sente por elas. por tudo. todo desprezível despreza. todo perdido encontra a maior perdição dentro de seus hábitos vadios recobertos por flores plásticas que, não morrem mas empoeiram.

atrás dele, na terceira realidade, há uma mulher realmente incrível. linda. jovem. talentosa na cozinha, nos bordados, nas contas bancárias que só engordam. ela acredita. quer acreditar porque reconhecer o fracasso absoluto daquele túmulo adornado de músculos e um sorriso maroto significaria o fiapo de desastre que lhe falta para perder o controle. e ela precisa de controle. o tempo todo. se não vai enlouquecer. seus pais nem tocam mais no assunto "marido". porque ele nada mais é que um aspecto de sua própria personalidade. coloca os óculos escuros e calcula cada vácuo, cada passant à paisana que lhe acena com falsidade. tudo é falso. até seus dentes. exceto ele. e seus vexatórios. exceto o amor sombrio que inventaram porque tudo que é sombrio, afinal, refresca.

amor luminoso, ofusca. ela estaciona do Green Park e se esparramam na grama áspera. rolam de amor e depois se cansam até das novidades.

no fundo, ele é tímido e desambientado. está em uma festa esnobe, cheia de bem-sucedidos na orla da praia. estranhos todos os olhos parecem tecer comentários. mas, na verdade, não se importam. as mesmas cenas, os mesmos esbarrões. agora vem a cantora. ela bebe e está séria. ela expressa tanta paixão que enjoa. não se pode falar com ela por mais de cinco minutos. até quando é simples se torna insuportável porque quem a vê cantar um dia não consegue se aproximar dela. sozinha. pra sempre. amém.

sabe que não sabem seu nome, nem poderiam se lembrar. sua mulher, com paciência, recolhe seus cacos bêbados de alegria que se estraçalham pelas mesas bem adornadas. as noitadas de mentirinha. cheia de bonecas de porcelana, conversas de champagnhe em vozes de plástico, puro glamour e muito brilho.

eles se dão bem. há sempre um caso romântico arrebatador que os rouba do real que usurpa seus pés até a alcova alheia. e tudo fica bem, tudo ficará. até que a morte os separe.

04 outubro 2010

lugar comum

à meia noite uma garrafa enfiada embaixo do moleton velho. calças de ginástica preta fuma seu penúltimo cigarro no intervalo propício da rua, as últimas janelas se apagam.

os cachaças costumeiros estalam a língua observando o contorno de sua bunda. ela não usa calcinha. paga uma caixinha de fósforos. volta os pés quase deslcaços pede uma boca de pito no balcão o rapaz esquálido fedendo mofo serve café frio da garrafa. ela sorve num só gole gotículas de umidade enroscadas no emaranhado dos cabelos, brilham.

sua pele é fria e pálida. seus dentes são pontiagudos e azulados. os olhos exauridos. amarelo-esverdeados envoltos por delicadas olheiras azuis esnobam e cospem no mundo e a boca roxa -de frio-chupa cigarros cigarros...

é a mulher mais linda que já vi. parece-me uma menina perdida. os cabelos desgrenhados. óculos enormes. vai saindo, tomo um copo de coragem pergunto se. ela olha vê que não sou dali. não pareço ser. olha para o bar imundo. respira o aroma da boca de ralo baratinhas daquelas pequenas, não sei se uma raça menor ou filhotes- correm ao redor de seus pés. não passam por eles, são muito brancos com veiazinhas azuis saltadas. tem a pele de quem não vê o sol. ou passa

muito frio, parece

não se importar. seguimos até a esquina que dá para minha rua. o ar está úmido e gelado mas ela não se agasalha. apenas o moleton largo e encardido embaixo de uma setecopas muito antiga paramos para nos respirar. não a olho e sinto seu campo bioestático fluir em mim. o chumbo da sua presença; nossas experiências noturnas sobrepondo a sociopatia sórdida do mundo. deslizo a mão na casca da árvore úmida coberta de musgos cravo minhas unhas ficam pretas. a rua molhada reflete luz laranja-óleo, o mesmo, de outros dias

o frio grudento se prega às nossas caras. seguro sua mão,

que tem aí embaixo? ela se solta me olha como um animal que arranha.
ah, não sabe? conhaque. tira a garrafa por baixo da blusa não usa nada.
vamos tomar isso aí?
se não pagou, não toma. coloco dinheiro em sua mão. ela entende.
ia te convidar pra entrar.
não tô afim.
é que...tudo bem. vai indo embora, apressada.
posso te acompanhar?
não.
tenta abrir sua garrafa com os dentes. não consegue.
espra. eu ajudo. parece que a chuva tá engrossando.
ela entorna a garrafa bebe de um gole quase um terço do líquido.
que sede! penso, mas não digo.
ela é como um pássaro. não posso afugentá-la. passarinho leve. bico calado. ela fuma. eu observo morgecos voarem felizes de galho em galho. talvez se divirtam com a chuva.

fuma? finalmente sorri. sorrindo é ainda mais linda.
não.
não fuma. não bebe. tava fazendo o que na birosca?
é estranho. mas eu fui até lá pra me encontrar com uma mulher.
e por que não tá lá esperando?
borboleta arisca. bate asas e voa. delicada longe, longe...

moro aqui. quer entrar? insisto.
escuta...
você bebe seu conhaque, não me meto.
não vá se engraçar comigo.
só te ofereço companhia. aqui estamos melhor que mofando na chuva, to com frio. me dá um gole desse teu conhaque. tem cara de bicho, assim embaixo do poste. olhos amarelos fluorescentes.
não gosto daqui. fede.
onde você mora?
ela solta uma gargalhada horrenda ao mesmo tempo em que um raio seguido de trovão se escancaram no céu.

parece tranquila agora que exerce seu total domínio sobre mim. dança leve sobre os próprios pés, entra apartamento adentro. pula no meu sofá e afunda...parece um gato. de rua.

minha casa cheia de objetos aleatórios espalhados no chão me envergonha um pouco. minhas folhas, fotografias e o pijama de minha mãe. que esqueci, merda, estendido no sofá. como um vestido de noiva macabro.

mora sozinho?
é...
e essa camisola?
era da minha mãe.
cadê ela? seus olhos farejam.
morreu... morreu semana passada. eu acho. não durmo direito desde então. minha olheiras meu abatimento não me deixariam mentir.
silêncio. ela me olha e me vê. ela sabe. tudo sobre mim, me dissipa, me estraçalha.
que dia é hoje? pergunto disfarçando.
sei lá. que diferença...
minha mãe dormia aqui. aponto um quartinho -a porta quebrada. agora me sinto mais à vontade, ela me absolveu. está risonha -quase- feliz. tá uma zorra essa casa, desculpa. vou á cozinha trago copos e um pouco de pão.
já estive em lugares piores. seus olhos de repente brilham. ataca a manteiga, o pão, o queijo.
podia me dizer seu nome.
ela riu, sarcástica. tem alguma bebida aí, professor? enquanto procuro entre meus chás gelados ela fuça em todos meus livros.
toma conhaque, está do meio pro fim. mastiga o queijo o pão. deixa a garrafa de lado. liga a vitrola da minha mãe.
a propósito meu nome é...
vamos dançar, professor!
eu me chamo...
eu não perguntei teu nome. entorna o conhaque, arrebenta a garrafa no chão! olha pros cacos fascinada, dança, quase afunda os pés nos estilhaços. aumenta o som.
ei, espera, os vizinhos.
que se danem! ela dança. sua mão quase se esquece que ainda segura a boca da garrafa quebrada. fica com o caco da garrada na mão como se fosse sua vida. não larga. uma faca.

quase em desespero, como uma criança desamparada me olha e pede:

bota algo legal pra gente ouvir, isso é música de doido. ela é romântica. afinal. o rosto retoma as cores. está quente de conhaque e satisfeita na barriga. as bochechas vivas os dentes e os olhos azulados. parece mais nova do que é. pula pra perto da vitrola. dança uma música invisível. detesta escutar mozart. música de doido.

do que você gosta?
Verdi. Bizet. vai vestindo a camisola da minha mãe. por cima da roupa
que tal jazz?
Rock.
Zeca Baleiro?
que tal blues?

rimos juntos. ela solta uma gargalhada macia, fala leve, fuma, dança.
não imaginava...
sou professora.
de quê?
violino. ao som de violinos ela dança com a camisola. estou horrorizado.
por que não tira isso?
hoje é sábado.
por que não tira?
a música?
ela ri de novo. escuta, tem fogo? meu cigarro apagou.
tira essa roupa, por favor.
ela apaga junto. tira a camisola. acendo seu cigarro na chama quase sem gás do fogão.

volta a se esparramar no sofá. me olha parece que me acha. tomo coragem, lhe digo:
então, hoje é sábado...
hoje é segunda-feira, maluco. professor aloprado. levanta dá dois giros e dança... como quem já vai embora
dança, dança...
meu nome é lúcio.
não me importa. foda-se.
meu pai queria me chamar Prometeu. minha mãe, lúcio. lúcio prometeu.
e não cumpriu!
rá. essa é clássica.
lugar-comum.

o assunto morre por aí. entediada levanta pega sua caixinha de fósforo molhada, único pertence, e vai se despedindo:

tu é o cara mais puro que já conheci. inocente. tu é inocente. tem a boca bonita. chega perto -sinto seu hálito -e foge.

vejo dentro dos seus olhos. está nua. me olha.
eu sei. me achou a pérola do butiquim. fala e vai envolvendo meu pescoço com seus braços gelados.
isso.
a flor da noite.
não é isso? coloca suas armaduras. parece enojada. segura seu pedaço de vidro outra vez.
entou entre ela e a porta. quase suplico com os gestos.
morreu do quê?
o quê?
tua mamã?
que tem ela? não entendo, não escuto. por que ela quer ir embora? seguro-a pela cintura. nos queremos.
tu é sozinho. tua vida é um caos. um porre caras como você.
levantou foi saindo. segurei a porta. ela, o caco de vidro.
nos olhamos. ela tem ódio. tem pena. tudo misturado... eu tenho sandices! me acometem inspirações supremas de desespero e saudade. eu me lembro dela, como um trem passando rápido em minha vida, esmagando os trilhos, esmagando as linhas contínuas, uma eterna desconhecida. uma qualquer! uma mulher pálida esfaqueada na escada de um prédio sujo.

quase digo: fica. mas não digo, ela entende.
vai e senta no sofá, novamente, resignada. não se importa. é como se a vida fosse chata. porque está comigo.

e você? insisto.
sou professora.
ah, é? mentirosa. o que você ensina?
ensino ser leve. livre. pombinha dos riachos.
como se meteu nessa vida?
ela chega perto. uma gata selvagem. esfrega o vidro bem no meu nariz.
mais forte que eu. esse quê didático. dessa vez, desabafa, muito simples: você quer polir a pérola suja... quer redenção. aposto que reza pra jesus.

e ri, se achando engraçada. escorre um filete de sangue do meu rosto.

como ficou demente? pergunta. risonha.
como?
sua mãe. começou devagar?
fico em silêncio ouvindo Aretha lamuriar seu blues na vitrola. estamos cansados. a ponto de dormir. chega cada vez mais próxima da poltrona está buscando se acomodar.

ficamos calados. ela se levanta, sorri, me anuncia no jornal: ex-funcionário público, semi-gay, aposentado por insensatez. procura prosticura-consolo. depois de quatro dias sem dormir. pra ficar até uma da manhã. prefere acordar sozinho.

meus olhos lacrimejam. errou tudo. sempre fui bonito. sempre tive esse corpo selvagem e flexível. as mulheres orbitam ao meu redor. não posso fazer nada. minhas mãos sempre foram tremulas. eu simplesmente escolho você.
interessante. não sabe nada sobre mim.

que houve com seu marido? agora eu saco ela.
não te interessa. não disse que era casada.
tem marca de aliança das grossas no dedo. tu era mimada, riquinha. despirocou.
vendi o anel. pra comprar cigarros.
pode dormir aqui, se quiser, fulana. estávamos quase fazendo as pazes. mas se incomodou com o fulana.
ela se levanta tranquila: então, vou tomar banho. meu deus faz tanto tempo...
o chuveiro não tem energia.
vou mesmo assim.
a água é fria, grito em desespero. minha voz falha.

ela entra. o chão do banheiro está molhado. cheio de manchas. um odor putrido vem dali. a luz não acende. não tem energia.

um grito.



filho da puta! matou tua mãe... ela mata a charada. o conto termina.