04 outubro 2010

lugar comum

à meia noite uma garrafa enfiada embaixo do moleton velho. calças de ginástica preta fuma seu penúltimo cigarro no intervalo propício da rua, as últimas janelas se apagam.

os cachaças costumeiros estalam a língua observando o contorno de sua bunda. ela não usa calcinha. paga uma caixinha de fósforos. volta os pés quase deslcaços pede uma boca de pito no balcão o rapaz esquálido fedendo mofo serve café frio da garrafa. ela sorve num só gole gotículas de umidade enroscadas no emaranhado dos cabelos, brilham.

sua pele é fria e pálida. seus dentes são pontiagudos e azulados. os olhos exauridos. amarelo-esverdeados envoltos por delicadas olheiras azuis esnobam e cospem no mundo e a boca roxa -de frio-chupa cigarros cigarros...

é a mulher mais linda que já vi. parece-me uma menina perdida. os cabelos desgrenhados. óculos enormes. vai saindo, tomo um copo de coragem pergunto se. ela olha vê que não sou dali. não pareço ser. olha para o bar imundo. respira o aroma da boca de ralo baratinhas daquelas pequenas, não sei se uma raça menor ou filhotes- correm ao redor de seus pés. não passam por eles, são muito brancos com veiazinhas azuis saltadas. tem a pele de quem não vê o sol. ou passa

muito frio, parece

não se importar. seguimos até a esquina que dá para minha rua. o ar está úmido e gelado mas ela não se agasalha. apenas o moleton largo e encardido embaixo de uma setecopas muito antiga paramos para nos respirar. não a olho e sinto seu campo bioestático fluir em mim. o chumbo da sua presença; nossas experiências noturnas sobrepondo a sociopatia sórdida do mundo. deslizo a mão na casca da árvore úmida coberta de musgos cravo minhas unhas ficam pretas. a rua molhada reflete luz laranja-óleo, o mesmo, de outros dias

o frio grudento se prega às nossas caras. seguro sua mão,

que tem aí embaixo? ela se solta me olha como um animal que arranha.
ah, não sabe? conhaque. tira a garrafa por baixo da blusa não usa nada.
vamos tomar isso aí?
se não pagou, não toma. coloco dinheiro em sua mão. ela entende.
ia te convidar pra entrar.
não tô afim.
é que...tudo bem. vai indo embora, apressada.
posso te acompanhar?
não.
tenta abrir sua garrafa com os dentes. não consegue.
espra. eu ajudo. parece que a chuva tá engrossando.
ela entorna a garrafa bebe de um gole quase um terço do líquido.
que sede! penso, mas não digo.
ela é como um pássaro. não posso afugentá-la. passarinho leve. bico calado. ela fuma. eu observo morgecos voarem felizes de galho em galho. talvez se divirtam com a chuva.

fuma? finalmente sorri. sorrindo é ainda mais linda.
não.
não fuma. não bebe. tava fazendo o que na birosca?
é estranho. mas eu fui até lá pra me encontrar com uma mulher.
e por que não tá lá esperando?
borboleta arisca. bate asas e voa. delicada longe, longe...

moro aqui. quer entrar? insisto.
escuta...
você bebe seu conhaque, não me meto.
não vá se engraçar comigo.
só te ofereço companhia. aqui estamos melhor que mofando na chuva, to com frio. me dá um gole desse teu conhaque. tem cara de bicho, assim embaixo do poste. olhos amarelos fluorescentes.
não gosto daqui. fede.
onde você mora?
ela solta uma gargalhada horrenda ao mesmo tempo em que um raio seguido de trovão se escancaram no céu.

parece tranquila agora que exerce seu total domínio sobre mim. dança leve sobre os próprios pés, entra apartamento adentro. pula no meu sofá e afunda...parece um gato. de rua.

minha casa cheia de objetos aleatórios espalhados no chão me envergonha um pouco. minhas folhas, fotografias e o pijama de minha mãe. que esqueci, merda, estendido no sofá. como um vestido de noiva macabro.

mora sozinho?
é...
e essa camisola?
era da minha mãe.
cadê ela? seus olhos farejam.
morreu... morreu semana passada. eu acho. não durmo direito desde então. minha olheiras meu abatimento não me deixariam mentir.
silêncio. ela me olha e me vê. ela sabe. tudo sobre mim, me dissipa, me estraçalha.
que dia é hoje? pergunto disfarçando.
sei lá. que diferença...
minha mãe dormia aqui. aponto um quartinho -a porta quebrada. agora me sinto mais à vontade, ela me absolveu. está risonha -quase- feliz. tá uma zorra essa casa, desculpa. vou á cozinha trago copos e um pouco de pão.
já estive em lugares piores. seus olhos de repente brilham. ataca a manteiga, o pão, o queijo.
podia me dizer seu nome.
ela riu, sarcástica. tem alguma bebida aí, professor? enquanto procuro entre meus chás gelados ela fuça em todos meus livros.
toma conhaque, está do meio pro fim. mastiga o queijo o pão. deixa a garrafa de lado. liga a vitrola da minha mãe.
a propósito meu nome é...
vamos dançar, professor!
eu me chamo...
eu não perguntei teu nome. entorna o conhaque, arrebenta a garrafa no chão! olha pros cacos fascinada, dança, quase afunda os pés nos estilhaços. aumenta o som.
ei, espera, os vizinhos.
que se danem! ela dança. sua mão quase se esquece que ainda segura a boca da garrafa quebrada. fica com o caco da garrada na mão como se fosse sua vida. não larga. uma faca.

quase em desespero, como uma criança desamparada me olha e pede:

bota algo legal pra gente ouvir, isso é música de doido. ela é romântica. afinal. o rosto retoma as cores. está quente de conhaque e satisfeita na barriga. as bochechas vivas os dentes e os olhos azulados. parece mais nova do que é. pula pra perto da vitrola. dança uma música invisível. detesta escutar mozart. música de doido.

do que você gosta?
Verdi. Bizet. vai vestindo a camisola da minha mãe. por cima da roupa
que tal jazz?
Rock.
Zeca Baleiro?
que tal blues?

rimos juntos. ela solta uma gargalhada macia, fala leve, fuma, dança.
não imaginava...
sou professora.
de quê?
violino. ao som de violinos ela dança com a camisola. estou horrorizado.
por que não tira isso?
hoje é sábado.
por que não tira?
a música?
ela ri de novo. escuta, tem fogo? meu cigarro apagou.
tira essa roupa, por favor.
ela apaga junto. tira a camisola. acendo seu cigarro na chama quase sem gás do fogão.

volta a se esparramar no sofá. me olha parece que me acha. tomo coragem, lhe digo:
então, hoje é sábado...
hoje é segunda-feira, maluco. professor aloprado. levanta dá dois giros e dança... como quem já vai embora
dança, dança...
meu nome é lúcio.
não me importa. foda-se.
meu pai queria me chamar Prometeu. minha mãe, lúcio. lúcio prometeu.
e não cumpriu!
rá. essa é clássica.
lugar-comum.

o assunto morre por aí. entediada levanta pega sua caixinha de fósforo molhada, único pertence, e vai se despedindo:

tu é o cara mais puro que já conheci. inocente. tu é inocente. tem a boca bonita. chega perto -sinto seu hálito -e foge.

vejo dentro dos seus olhos. está nua. me olha.
eu sei. me achou a pérola do butiquim. fala e vai envolvendo meu pescoço com seus braços gelados.
isso.
a flor da noite.
não é isso? coloca suas armaduras. parece enojada. segura seu pedaço de vidro outra vez.
entou entre ela e a porta. quase suplico com os gestos.
morreu do quê?
o quê?
tua mamã?
que tem ela? não entendo, não escuto. por que ela quer ir embora? seguro-a pela cintura. nos queremos.
tu é sozinho. tua vida é um caos. um porre caras como você.
levantou foi saindo. segurei a porta. ela, o caco de vidro.
nos olhamos. ela tem ódio. tem pena. tudo misturado... eu tenho sandices! me acometem inspirações supremas de desespero e saudade. eu me lembro dela, como um trem passando rápido em minha vida, esmagando os trilhos, esmagando as linhas contínuas, uma eterna desconhecida. uma qualquer! uma mulher pálida esfaqueada na escada de um prédio sujo.

quase digo: fica. mas não digo, ela entende.
vai e senta no sofá, novamente, resignada. não se importa. é como se a vida fosse chata. porque está comigo.

e você? insisto.
sou professora.
ah, é? mentirosa. o que você ensina?
ensino ser leve. livre. pombinha dos riachos.
como se meteu nessa vida?
ela chega perto. uma gata selvagem. esfrega o vidro bem no meu nariz.
mais forte que eu. esse quê didático. dessa vez, desabafa, muito simples: você quer polir a pérola suja... quer redenção. aposto que reza pra jesus.

e ri, se achando engraçada. escorre um filete de sangue do meu rosto.

como ficou demente? pergunta. risonha.
como?
sua mãe. começou devagar?
fico em silêncio ouvindo Aretha lamuriar seu blues na vitrola. estamos cansados. a ponto de dormir. chega cada vez mais próxima da poltrona está buscando se acomodar.

ficamos calados. ela se levanta, sorri, me anuncia no jornal: ex-funcionário público, semi-gay, aposentado por insensatez. procura prosticura-consolo. depois de quatro dias sem dormir. pra ficar até uma da manhã. prefere acordar sozinho.

meus olhos lacrimejam. errou tudo. sempre fui bonito. sempre tive esse corpo selvagem e flexível. as mulheres orbitam ao meu redor. não posso fazer nada. minhas mãos sempre foram tremulas. eu simplesmente escolho você.
interessante. não sabe nada sobre mim.

que houve com seu marido? agora eu saco ela.
não te interessa. não disse que era casada.
tem marca de aliança das grossas no dedo. tu era mimada, riquinha. despirocou.
vendi o anel. pra comprar cigarros.
pode dormir aqui, se quiser, fulana. estávamos quase fazendo as pazes. mas se incomodou com o fulana.
ela se levanta tranquila: então, vou tomar banho. meu deus faz tanto tempo...
o chuveiro não tem energia.
vou mesmo assim.
a água é fria, grito em desespero. minha voz falha.

ela entra. o chão do banheiro está molhado. cheio de manchas. um odor putrido vem dali. a luz não acende. não tem energia.

um grito.



filho da puta! matou tua mãe... ela mata a charada. o conto termina.

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