29 outubro 2010

manteiga derretida

derretendo em lágrimas. quanto mais elásticas eram as pernas mais suave iam magricelas como na infância.

inventava felicidades clandestinas. mas desde mocinha a estranhez dos estranhos lhe causava uma espécie de abatimento na boca. o rosto se fechado tomado por timidez ,não sorria. mas não era tímida, ao contrário, sentia-se capaz de tudo.

todas as palmas e todos voos e seus vexames seriam dela e de sua natureza extravagante, não fosse o ressabiamento, uma intuição a respeito do medíocre humano, que lhe permitia parecer normal, quieta, brusca. para ela era como se o mudo a lançasse em cena sem ensaios. e isso era tão enorme que não sabia como dizer nem quando por isso aos poucos foi recolhendo os ombros disfarçando a beleza diminuindo o próprio brilho e inteligência até se fundir aos demais, a massa cinzenta e apaática.


ela seria como uma delicada flor em meio aos espinhosos cactos ressequidos daquela terra seca e avermelhado fosco feito talho de sangue.

seu corpo saudável tomava mostruosa formosura e logo seus cabelos compridos brilhando lustra não passariam incólumes seu corpo morno e ao mesmo tempo receptivo andava selvagem em suas matas virgens e espinhosas, as que só ela conhecia as trilhas.

escolheu prontamente a postura cômoda do esconderijo. embrenhada no mato, não devia satisfação a ninguém. banhando-se nas cascatinhas, nos poções d´ágia roubando manga, goiaba e cachos de bananinha ouro.

mas queria ser feliz, em outros universos, como queria. só não sabia isso que queria o que era. as mãos se fechando em ardores de corpo a se abrir pétala por pétala na ansiedade claustrofóbica de chegar a um gozo muito além dos cinco minutos de sorvete., de fruta lambida, de língua de menino dentro da sua boca.

queria o gozo calmo de estar queita e compreender. mas não podia ser ela mesma, porque ela não compreendia. tinha ânsias por chupar todos os dedos, todos os cigarrostos todas as garrafas as mulheres todos os bombons todos os licores de macho matar a sede de viver como quem procura algo, uma ramo, uma galho de salvação, que há muito já deveria ter crescido dentro.

mesmo que de mentirinha, era divertido se divertir. como quem esquece o assunto porque já se tornou parte dele, suas misérias eram íntimas companheiras, então vivia e era feliz. ás vezes pegava bicho-de-pé, as vezes, cocheira braba...

certezas não tinha. apenas as que vieram desde pequena e foram ficando esfiapadas como os vasos de louça da sua avó, tão lascados. tentando sempre agradar ao pai recebendo com parcimonia o ciúme que disfarçava de proteção. e da mãe, aceitava a loucura. o cheiro de sarro e fumo.

cinco minutos de sorvete. gela a língua arrepia o pescoço escorre no pescoço e então acaba. espumava pela boca pois pretendia se safar pela força de seu espírito, através da perspicácia que lhe ensinaram as agrúrias, a sobreviver às nuvens fofas que não se importam com suas dores. ela no final quaquaraquaquá...e dormiria embaixo do pé de cedro sem se importar com as formigas e vinham beliscar suas bochechas.

sairia ilesa das recorrências da sua vida. mas apesar de ensaiar respostas sagazes a altura de qualquer um, não se saia bem falar com os outros. não adiantava espernear. talvez um dia pudesse abrir a boca sem parecer ridícula, talvez um dia sua beleza fosse tão maior que qualquer maldade e brilharia como a rainha que era, como a rainha da paz.

quem era ela afinal? por que era capaz de tanto e de tanto pudor em seus sonhos e tudo se deteriorava horrivelmente quando a realidade vinha lhe passar a perna, quando a vida vinha lhe cuspir na cara?

na superfície da língua as palavras escorriam quase em pensamento alto a testa franzida demais para uma garotinha de onze anos. andava para lá e para cá por dentro se oprimia como se faltasse fôlego à pálida alegria. fatiga branca, amarelada, fatiga de ser bem mulher, os peitinhos despontavam em caroço dolorido e o corpo enroliçando.

recolhida em seus ombros, entorpecia a mente com livros, um inventices. tremia com batidas fortes de coração quando o touro cobria a vaca e a cadela lhe deixava passarem a língua por vários machos.

por aqueles dias já pretendia cometer um crime. qualquer um. e conhecer homem. abnegou cedo a polpa da fruta mais doce. chupava escondida e só mangas verdes embaixo da mangueira. e espetava os dedos nas rosas só pra ver cravados fundo e esfolados os dedos como os estilhaços da sua vida. e chupava o sangue com gosto e passava horas sozinha, como se não existisse, tão linda, uma margaridinha selvagem que ninguém colhia, porque se escondia nas ramagens ruins.


caiu e quebrou. lembrava muito bem a manhã fria da tragédia. o retrato de vidro caiu da mão da criada. a mãe veio feito ave de rapina pra cima das duas. ela apontou com os olhos pra criada que já esmiuçava um choro desculposo, a voz da mãe estalou feito chicote tamanha era sua fúria.

a foto adornada à vidro, da família toda quando haviam passado férias em praia chiques comendo queijo e batata frita. os pais lhe deram a ela e aos irmãos todo o sorvete que quiriam.

o irmão mais novo era tão lindo seu pai sua mãe bonita seu pai às vezes desaparecia seu irmão tão lindo tão apaixonada por ele sua mãe ainda bonita mas com olhos assustadoramente pretos diferente dos olhos do seu pai que eram verdes e calmos.

o que mais podia se lembrar eram os sapatos de sua mãe, vermelhos em volta como se fosse um animal exalando fumaça pelo hospital os enfermeiros a afastavam mas suas unhas compridas feriam braços, rostos, pescoços. acendia um cigarro berrrava com as enfermeiras parecia louca repetia sempre “seus canalhas desgraçados” um empurra-empurra até que o pai surgiu rindo. todo desabotoado. de barba crescida e um sorriso amanhecido na cara. então tudo parou. tão mole. as pernas moles os rostos derretendo. não sabia bem porque mas continuou sentada as pernas elásticas pulsando até tudo amolecer quentinho quase delicioso o líquido amarelo escorrendo morno dentro o coração acelerado vibrando de prazer mas o rosto tranqüilo quente pelas pernas amarelo morno pingando no chão e depois o tapa.


derretendo em lágrimas.


sua mãe lhe esbofeteou num estrondo desistiu de arranhar os enfermeiros e fez com que todos voltassem seus olhos para a cena principal e sua pequena protagonista: o tapa na cara. depois outro . três, vários no corpo nos braços quando pegou furiosa os sapatos para lhe cravar os saltos na carne o pai então a esmurrou bem no queixo na frente de uma platéia atônita. ta pegou no colo seu cheiro era de perfume doce cigarro todo o corredor do hospital lhe pareceu sombrio a enfermeira veio impropriamente anunciar que o irmão havia falecido. sua mãe desmaiada só uma semana depois soube o que havia acontecido.


sua beleza era estranha. e quanto mais estranha mais legítima e vigorosa. seu pai tão lindo charmoso e violento. sua mãe era a bruxa malvada rica que matou o irmãozinho porque não o levava para o hospital, sua avó dizia. ela se deitava na cama e sofria. sua avó paterna não tinha marido dirigia carro e odiava todo mundo exceto ela. exceto ela que era o amor da sua vida. não queria mais que ela morasse com sua mãe, aquela mulher. aquela cadela. dizia também que ela era uma cadelinha quando brincava de bola na rua escondido com os meninos correndo descalço sujando a testa de terra. por que não o levou para o hospital? por quê? por que não o levou antes para o hospital? vinha a avó puxar seus cabelos louros compridos até dentro do castelo. os meninos da rua não riam, como os da escola.

não. eles ficavam parados acompanhando com os olhos arregalados um deles, um dia, até veio lhe socorrer. trouxe um chiclete de melancia, seu único tesouro, e uma margarida apanhada do próprio jardim da sua avó e ela lhe observou isso, ele corou e teria lhe dado um beijo se. mas ela não pulou a janela aquele dia. jamais pulou. jamais pularia. mesmo depois, muito tempo depois.

também tinha seu tio bonzinho e lindo que lhe acariciava a cabeça dizendo que foi a vontade de deus que levou seu irmãozinho. ele a punha no colo e ela queria sempre sentar em seu colo. sonhava beijos. queria. no colo dele sentia suas pernas quentinhas. não era uma santa.

então depois da mãe vinha deus na listinha negra. e depois os homens. e depois os hospitais e depois o irmão que brigavam tanto que ela

se derretia em lágrimas. em segredo. porque não trocaria mais sua vida pelo quarto de brinquedos como disse uma vez. não deusinho, era mentira. mentira. eu não troco, não troco meu irmão pelo quarto de brinquedos, juro que era mentira! devolve meu irmão, me devolve ele, deusinho, que eu vou ser sempre boa pra sempre boa boazinha. rezava em segredo, rezava quando a casa inteira estava dormindo somente ela sempre acordada a vida inteira acordada como a mãe mais tarde teria olheiras roxinhas delicadas e aquele abatimento da boca que só a deixava mais triste e bonita.



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