Tinha medo daquela rua. Do que se dizia sobre a rua de madrugada, era perigo. Fazia frio até dentro do casaco. A escuridão rasgada em fachos alaranjado-óleo nos postes. Um grilo riscou a noite e latidos de um cão longínquo, muito além do grilo, deixaram tudo mais amplo e sombrio -até as janelas com suas mandíbulas cerradas negavam qualquer apelo do meu frio. Tudo era uma solidão contínua a passos curtos, teria de caminhar mais sete quadras até a porta da quitinete se quisesse um pouco de calor úmido, uma noite de sono, sem sonhos, pesada, pesadelos. Segurava as chaves na mão, para me sentir mais próxima.
Passos. Seriam passos? Sim, ouvia-os nítidos e apressados em minha direção e se fosse um assassino? se fosse, andaria às plumas, discreto, sem fazer ruído. Não sei, na verdade, como andaria um assassino, é aquele tipo de coisa que ninguém comenta enquanto mastiga seu sanduíche. bobagem, é apenas alguém por aí apavorado feito eu até com a própria sombra. deve ser um velhinho resfriado, levando o cachorrinho pra fazer pipi, passará reto e sem olhar pros lados.
Além do mais a rua termina logo na próxima esquina bem iluminada, embora, estivesse entre essas árvores que metem medo chacoalham suas cabeleiras verdes curvando o pescoço pra resistir ao vento e uivam um assombroso anúncio de tempestade.
Se tivesse bebido, pelo menos, não me lembraria de como fui parar em casa e, onde quer que seja, estaria ao menos mal acompanhada, quem sabe algum estudante pretensioso e chatérrimo enchendo tanto meu saco que não sentiria nada além do sono. não seria de muita serventia ter um deles aqui agora comigo poderíamos apenas gritar e correr juntos, ele gritando mais que eu: quem poderá nos defender? Seu Foucault Colorado? Um horror compartilhado apenas. mas nenhum deles me ofereceu carona.
Só os gatunos são silenciosos, os assassinos não, que o mais divertido em matar deve ser o terror nos olhos da vítima. Poder acuá-la num beco à disposição de todos seus caprichos sádicos, além de quê esses passos me seguem com toda certeza, diria até, que tentam mesmo me alcançar. Mal podia mover as pernas frias tal o arrepio gélido a percorrer minha espinha dorsal. estava toda travada. não ignoro que há coisas bem piores que a morte -e que todas a antecede.
Veio numa espécie de grito íntimo que seria à facadas! já podia ver o reflexo persecutório da lâmina prata na escuridão sem lua... seriam múltiplas perfurações nos órgãos internos e uma na garganta, mas sem antes me retirar as tripas, talvez até fizesse alguma pausa - para saborear melhor sua presa. Lembrei do caso da garota golpeada dezessete vezes na rua -em nenhum ponto letal, para morrer esgotada lentamente, dentro de sua própria casa, seus pais, amigos, chamando do lado de fora, preocupados e ela engasgada no próprio sangue, sem pedir ajuda.
Televisão deixa a gente assim.
Uma vez rasguei sem querer um naco de dedo na ponta da faca, tentando abrir a latinha de ervilhas. A sensação é curiosa: a lâmina afiada penetra em pura manteiga macia, entrando na carne na verdade na hora não dói a pele simplesmente se rasga e depois arde um pouquinho mas lá estava meu dedo pateticamente pendurado na pele minando sangue pra todo lado. Encharquei todo o chão, empapei dezenas de panos-de-prato até que no pronto-socorro costuraram meu dedo de volta a cicatriz fez um anel de carne em volta do dedo, até gosto da cicatriz, minha mãe dizia que um dia eu teria um anel de verdade ali.
Era coisa de gente de requinte, especializado naquilo que gosta, matar daquela maneira a menina! dezessete vezes em nenhum ponto letal. Se gritasse agora soaria ridículo, talvez a polícia viesse correndo me prender porque incomodo os vizinhos tarde da noite, na rua, e me jogariam amarrada no camburão, por histerismo...Como da vez que dei uma machadada no espelho, por puro ódio, porque não encontrava meus sapatos, estilhaçando meu rosto, com cuidado, varri os cacos e joguei fora os fragmentos da garota que morava comigo, mudou-se de casa depois disso, escondi o machado e me senti muito bem, sem espelhos, sem garotas assustadas pra dividir a quitinete. Ninguém. Até que uma assistente social veio em visita súbita notar a ausência na parede desenhada em tom azul mais claro.
Perguntou o que havia na marca de ausência na parede... um quadro feio que tirei daqui. E a mulher ficou branca com a minha mentira disse até que o espelho era da tia da garota, notadamente conhecida por Cleonphes, e que este pertencera à avó da avó da desgraçada,você sabe quantos anos tinha esse espelho? Uma relíquia.
Cleonphes, pensei, alguém com esse nome não deveria nem ter nascido.
Moro completamente só há sete anos. As visitas irregulares do carteiro vinham me perturbar com contas de luz, traziam bons conselhos como economia e um pedaço de torta de frango que acabava dando ao cachorro de rua que vive aqui perto imiscuindo-se em minha vida, como anda, querida, os namorados? perguntou minha mãe, mexendo a colherinha na xícara, provocando ruídos insuportáveis, eu notava os pêlos ao redor do seu buço e tinha ganas de arrancá-los um a um com pinça.
Magra desse jeito, dizia ela, você não se cuida. Essa olheiras, minha filha, esses cabelos secos. A minha imagem doente e delicada como a de uma flor desfalecida, sempre respondo do mesmo modo, evasiva, ela sabe, que quebrei o espelho com um machado, desde então, trata-me com mais temeridade.
Mais dez passinhos e me livro desse medo nauseabundo, o vulto passa por mim e suas mãos me assustam quase urro preto, invisível e pesado. Pára meu coração também e recomeça rebumbando louco me pedindo pra correr e ele chega, aproxima-se, sinto sua presença fria, pergunta: Tem fogo? segurando um cigarro nos lábios. Tenho, digo tímida, porém controlada. Estava no bolso esquerdo do jeans ele olha inexpressivo, insinua sua boca, cigarro pendendo nos beiços. Passo o isqueiro para ele, suas mãos são frias. Não sei porque faço isso, mas sorrio para ele - que não nota, só queria fogo.
Fico um tempo parada, idiota. Vendo o cara dar o fora, me sentindo mal com essas paranoia estúpida, de repente, corro atrás dele antes que pense minhas pernas mais resolutas que eu, tinha um rosto bêbado e bonito e os olhos paraciam ter algo a dizer a noite toda, quem sabe, não fosse um cara bacana. Agora sou eu quem o persigo. Minha vítima. Quase corro, antes que ele dobre a esquina, penso.
Ei, peraí! Estanca a sola dos sapatos e me olha. Tem cigarro? pergunto ofegante, fôlego de fumante é curto nesses dias frios. É bonito mesmo, ou me parece. Era o último dele, merda. Mas a gente pode dividir este aqui, se quiser. Vai dizendo e sentando na escadaria de um prédio supimpa, meio estilo holandês, dá um trago rápido e passa sem se virar pra mim. Fico ali de cabeça vazia e ele quieto o tempo todo, traga, solta, passa. Escuta..., diz e pára. le volta a cara meio torta pra mim. Agora percebo que gosto dele porque é um pouco torto e tem olhos bêbados castanhos, com olheiras fundas como as minhas. Talvez me desse um tapete quentinho pra deitar, ou quem sabe pudesse me acompanhar uns três quarteirões até em casa, entrar pra tomar um chá...
Talvez devesse me oferecer, mas estou tão cansada que se ele topar, quem sabe, seria incapaz de vencer esse sono que resolveu vir de repente depois de cinco dias seguidos. Além disso, ele pode até morar mais longe e daí o risco de andar mais e mais, não compensaria. São só mais alguns quarteirões filhos da puta pra mim, e pronto. Começou me olhar diferente, uma energia tensa nos olhos como que adivinhando o que eu penso, o cigarro chegando ao fim. Levantou devagar, batendo o pó das calças. Vou indo nessa, obrigada pelo cigarro.
Então ele olha para longe e dá o último trago no cigarro e nem liga, agora com mais calma, solta, arrota cerveja e deixa a brasa esquentando o dedo então solta a bituca na escada e a esmaga com o bico do tênis e entra por ali mesmo, no prédiozinho holandês supimpa.
Dobro a esquina, suspirando e desapareço. Até que no fim deste imenso quarteirão atrás do prédio velho onde moro enfiada em um dos buracos de cimento protegida quem sabe de meias quentes nos pés e o vinho que não terminei na geladeira, minha televisão-companhia. Era girar a chave ouvindo o barulhinho bom das fechaduras abrindo-se aos nossos propósitos, apertar o molho mais forte nos dedos -um choque metálico, giro a chave depois meu corpo moído mergulha no hálito quente da sopa de ervilhas aquecida no microondas. Nunca mais vou à festas chatas em que ainda por cima tenho que voltar sozinha, prometo-me.
Não dá tempo entender a rápida dor aguda vinda do além, espécie de vingança cósmica, só pra exibir seu poder malévolo, feito ataque surpresa de marimbondos que a gente simplesmente nem sabia que estava metendo o bedelho no território deles, molestando... mas eles ficam putíssimos e se vingam. na cabeça com uma bruta força um filete de sangue escorre da testa ao nariz que estou quase morta numa paulada só, ele esmigalhou meu crânio. O vulto preto, invisível, deixa a mostra enorme pedaço de pau pousado inocente ao meu lado, enquanto mexe em minhas calças, no bolso ao lado do isqueiro, encontra uma nota de dez diluída, que eu havia esquecido da existência há séculos. Devo ter lavado a calça jeans na máquina umas dezessete vezes? Dezessete.
Pega meu sapato, examina, é velho e sujo. no outro bolso, descobre o isqueiro. o mesmo que emprestei pro rapaz bêbado e filho da puta, que nem me convidou pra entrar em sua casa, pra participar da sua vida, pra tomar um café antes de dormir, pra me acompanhar até em casa e trepar comigo, falar sobre Camus e Joyce e ir embora amanhecendo, mas esquecer o relógio. Puta bandida! Anda por aí sem dinheiro? Acho que escarra em mim e mete uma bica em cheio no meu estômago. meu corpo raquítico é arremessado pra trás, as costelas ainda têm tempo de doerem. O baque é surdo. Não reajo. Risca o isqueiro, não funciona, o gás estava acabando mesmo. Atira-o ao chão bruto e o espatifa inteirinho. Pega a nota e sai andando rápido, sem olhar pra lado nenhum esquece o seu pedaço de pau na calçada fria pra caralho. Então me lembro de olhar a chave enfiada na porta que ele nem notou que podia entrar. E rio.