03 outubro 2007

O fogo azul

Era homem sério, comia pouco, chegava ao trabalho em ponto pensando na hora do almoço intervalo escuro na cantina palitava os dentes enquanto recolhia com a língua fiapos de carne do palito. Os colegas riam uns para os outros.

Saboreava, por fim, seu mais triste e solitário cigarro, num canto, bebendo café ralo as mãos treinadas terminavam o serviço enquanto ele a cabeça nas nuvens... Talvez o chumbo na cabeça passasse se ele, às vezes, perdia o trem sem saber como voltaria pra casa no fim de semana esperava a segunda-feira seguinte segurando firme o controle da tv não faltava nem mesmo doente ou com a tia morta.
O corpo como se juntasse sujeira da rua e do escritório que a Jandira nunca passava a vassoura até os copos descartáveis eram sujos ele adquirira uma tez cinzenta que ia aos poucos lhe apagando as cores. Ela era assim cinza-invisível com ombros arqueados entre o tédio e acidentes de carro.

Incomodava apenas a pia do banheiro sempre entupida com tufos de cabelo dentro tinha até um amor de infância engolido dentro como um nó de gravata. Seu rosto tinha cicatrizes de acne para o qual comprava potinhos de creme.

Os olhos sempre irritados e cáries dentárias de má circulação do sangue e uma sede de não sei o que que não saia nunca mas seu pior era o desespero fino nos olhos de peixe morto e o banheiro sem papel higiênico.

Às vezes as farpas no dedo doiam quando era criança sua mãe não podia livrá-lo dos piolhos nem do medo dos outros.

A irmã engravidara criança e o retardamento mental do sobrinho tinha equizemas na pele do aborto que não deu certo: o menino tinha compulsão por doces que ele levava nas visitas por mais que arrochasse a pia continuava pingando sempre acordou com gritos de despertador histérica sua ex-namorada lhe passara doenças sexualmente transmissíveis. Tinha até já dormido bêbado no tapete chorando sozinho.

Casou-se e a mulher passava o dia fazendo compras e deixava o filho na cunhada doente e dizia pra ele brincar com o primo mas o menino ia chorando porque tinha medo do primo que era doido, malvado e fedia enquanto ela saía com os homens do bairro as vizinhas viam.

Fingiam não saber até da comida que ela fazia e que ele sentia como se comesse o próprio vômito. Não era de tirar os olhos da TV nem de brincar com o filho estava apenas acostumado com o cheiro deles e suas sombras pela casa as mãos tremiam durante a noite -e agora -durante o dia seu prazer secreto era limpar os fiapos da meia que se enfiavam entre os dedos e sentir o cheiro particular de tudo que era suado-escondido em seu corpo, muitas vezes, enfiava o dedo lá no banheiro e gostava do sol raquítico da manhã enfiando-se na pele cinzenta e enquantando seu sangue reptilíneo.

Ela sentada na calçada, distraída, tirando cera do ouvido com a unha ou lixando-as enquanto ele ia trabalhar, uma vez por semana, faziam amor então tentariam mais uma vez ela passava creme embelezador na cama vestida de cetim penteava os cabelos, num coque que depois desfazia, olhava a própria bunda no espelho sorria assoando o nariz na toalha e deixava aberta a torneira da pia. Suas garras compridas o puxavam então levantou-se de pressa suava frio foi ao banheiro trancou a porta e meteu-se o dedo então sentiu invadindo o corpo uma onda de prazer agudo. Chupou o dedo e lavou as mãos, disfarçando que procurava os chinelos sempre no armário mas ele pedia para deixar ao lado da cama ela deitava felinadissimuladamente de costas e esperava subindo a camisola na altura das coxas que ele a abraçasse com aquela intensidade fria, por trás, até o espasmo terminar em bocejo esperavam azedos para poderem apagar as luzes.

Em compensação pagava as prestações da nova geladeira que ela comprava tudo em prestações infinitas o fogão embutido seria ótimo, seria, os cursos que ela nunca fazia plasmava tvs que ele pagava sua casa ia se enchendo de coisas e não se viam mais em meio as tantas porcarias as custas das horas encardidas no escritório sem ventilador e uma única janela que dava pra parede e os escarros de Jandira na pia sempre fétida a comida da marmita era a pior parte.

Ela agora queria um cachorro, pra fazer companhia. E logo lá estava o cachorro ocioso feito a dona esparramado no tapete com o rabo para lá e para cá largando bosta pela casa toda. Um dia, enquanto pegavam fogo mecanicamente na cama um curto-circuito iniciou um incêndio arrasador na casa. Súbito e incontrolável, como a vida, a casa ficou em ruínas cinzentas como eles próprios, salvo por muito pouco, a mulher porém enroscada ao filho em seus lençóis e debruns torrada viva entre gritos porque não pode se livrar à tempo de suas posses queridas os bombeiros vieram calmos observar a destruição.

A vizinha horrorizada assistia a tudo sorrindo por dentro porque deus finalmente cobra o pecado dessa gente porca. Tudo perdido. A mulher, a casa e o filho. Quase tudo, acendeu um cigarro que alguém lhe estendeu por piedade. Nada perdido, tudo foi ganho. Ele soltou uma tênue gargalhada macabra que os outros não entendiam e desceu a rua madrugada adentro, o cachorro chamuscado o seguia.

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