A música tocava baixo. Guitarras e trompetes descompassado meu coração batia sinceramente não ouvia a voz dela ao fundo me dizendo palavras vermelhas de batom como se sua boca sangrenta beijasse a boca do copo.
engolíamos batata frita desinteressado lançava olhares cada vez mais densos e demorados, os olhos pesados que mal mantinha abertos.
fazia comentários supostamente leves.
ela usava moletom amarelo-esquisito. até porque não fazia frio. seu queixo tremia um pouco e as mãos sempre que buscavam as minhas eram frias e desesperadas. me perguntava que importância teria ouví-la até o final.
o garçom nos olhava molemente descia mais uma cerveja e dava o fora, discreto e alheio aos meus protestos, queria ir embora, tirar os sapatos, acender um cigarro e relaxar no sofá de olho em algum melancólico pornô, quanto mais depravado, mais melancólico...
olhei surpreso meu rosto no espelho. e sem pestanejar mandei mais um copo garganta abaixo, engolindo amarelo. arrotei um gás fermentado que deixou a cabeça tonta.
ela ajeitou os óculos como se agora fosse dizer algo realmente importante com os dedos tão finos quase transparentes colocava as mexas de cabelo atrás da orelha e fixava os olhos em mim pra ver se estava dentro ou fora de órbita. minha graça era disfarçar.
então falava e falava e falava abrindo rindo e fechando tanto- a boca- que não pude deixar de notar que caía lá fora sobre as mesas de plástico amarelas com o símbolo da skol uma chuva fraca. faíscas de água à luz do poste.
lavando o pó das ruas.
alguém balbuciou no fundo:
A vida é uma sombra errante, um pobre ator que gesticula em cena por uma hora ou duas e depois não é mais ouvido. Uma história contada por um idiota, cheia de bulha e fúria, que não significa nada.
Então, a cortina se fechou. meus olhos cerrados para não ver o mundo girar vertiginosamente como a água no ralo como a galáxia em direção ao seu centro de massa, como o DNA espiralado que sucumbe em um ponto de mutação.
ela tocou minha mão como se compreendesse que meu problema não era exatamente nós. era eu, eram seus dedos tão pequenos e transparentes infiltrando-se em minha cabeça, acariciando meus cabelos. eles puxavam fios invisíveis de idéias e memórias e aos poucos fui sentindo asco e ânsia. despejei uma masa amarela de batata e cerveja na privada e meus olhos inchados e vermelhos miravam um rosto transtornado.
e olhava sem parar como se fosse para sempre.
quando voltei ela clamava por um beijo.
mas não a escutei, nem uma palavra, e devia estar mesmo orgulhosa do que dizia um pouco histérica, eu ria amarelo-esquisito, que não saberia fazer outra coisa.
nos levantamos. o ar abafado que a chuva fraca não conseguiu dissipar soprou bem na minha cara expectativa enquanto meu rosto pálido de madrugada perdeu aquele brilho que me mantinha vivo e atento. eu era pequenos pedaços espalhados pela noite, dissipado pela madrugada, vomitado nos becos escuros. eu era o desespero mudo da cidade e a violência sexual implícita em cada arreganhar de dentes humano.
mas nossos planos não passavam de uma noite solitária que não passava nunca.
precisava dar o fora dali, imediatamente, para longe dela dali mas o rapaz invisivelmente encheu outra vez
meu copo até a boca derramando mais um gole espumoso garganta a dentro
curtíamos a música e a chuva e fui me amarrando na língua dela deslizando pelos lábios secos de cigarro -acendia um na brasa do outro e fumava até o filtro. ela linda e amarela me pedia para ser seu namorado. eu que não sabia pertencer, que mal cabia em mim- sequer sabia se poderia sobrever àquela noite.
às vezes era assim, entendido e entediado, nas horas vagas era apenas sossego. ondas de prazer que fluiam e se regurgitavam entre nós e, desta vez, quem grita sou eu:
Em vão as mulheres batem à porta...
A gargalhada etílica desceu quente engasgando na garganta e calei, cismado. não tinha mais nada nos bolsos, nem dinheiro, nem desculpas. ela percebeu tudo, rápida e espertinha como sempre. levantou-se empurrando brusca a mesa em minha direção. senti o martini seco do copo dela cegar meus olhos. cheiro de álcool no nariz.
deixou o bar para sempre. eu sei. não que não tenha entendido, mas uma lágrima grossa rola pelo meu rosto e, miseravelmente só e sorrindo pesco a última azeitona no pratinho de louça...
e só depois de muito tempo reparo que chuva parou.
pode ser melhor.
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