06 dezembro 2007

Retratos&Paisagens

Isabel:

Sobre o orvalho os copos piscam luminosos quando o sol entre árvores gingantescas e antigas mergulhava seus olhos em azul-engarrafado podia até abri-los profundamente havia um círculo cristalino e gelado formado por seus corpos nus

o braço dela entrelaçado ao braço dele seus pés quase se tocavam.
dormindo na relva e o vento soprava seu cabelo como eletricidade a fluir da terra até as veias frias
satisfações como as de viver aventuras terríveis


e quando acordasse sentiria seus seios túrgidos e arroxeadas coxas doloridas

adormeceu com o pescoço oferecendo lânguido a jugular ao vento; o rio ao longe verde. azul?

depois o pesadelo de aspirinas e vias nasais congestionadas além de um termômetro embaixo da axila esquerda.


Daniel:


Dezenove anos caminhando à superfície das águas
cujo volume embaixo dos pés é um mundo
de obscuridades
e o limite
da procura,
simplesmente.




Satisfação. Insatisfação.





A espuma branca, a lâmina prata, os pelos. Daniel escanhoou o rosto com precisão assassina e mãos que tremiam um pouco a chuva lá fora cantarolava uma ária de medo e de morte.
O cheiro doce de asfalto encharcando as narinas as pernas cobertas de pêlo o peito e virilhas que pareciam não chegar nunca começou delicado pelos pêlos das pernas o fio de pele branca brotando da lâmina delicado as coxas de pêlos raspados

Braço, peito, axilas. Alisava seu corpo com água
na boca e shampoo nos cabelos
totalmente espuma e sem pêlos, meio bobo, meio infantil, foi até o espelho e desejou lentamente aquele corpo suavemwente desnudo
Contorcendo-se até o espasmo mole da tarde.

Satisfação. Insatisfação.

29 novembro 2007

Retratos&Paisagens

A nau frágil da flor flutua
na mesma poça d’água
escura há séculos secam
-se as pétalas como
um corte cego seca
na mão.

21 novembro 2007

Calabouço da esperança

Abro a cortina dos olhos sólidas pestanas de luz do mundo invisível surgem cores e sobretons de matéria de que já não sou feito do que era, antes, encho minha estante de apêndices ainda mais solitários e durmo sobre as certezas do travesseiro que se acumulam nos criados-mudos. criado-mudo com livros.

Pesada lápide dos meus cúmulos: não importa estar desperto ou infeliz não há diferença alguma nas sensações que filtro e invento para me tornar alguém mais parecido comigo
mesmo tendo de retomar expressões fixas e, doravante, bonitas:
assombra não ser arte nem cru só uma inocência amarela brilhando na janela dos outros apartamentos o silêncio geral do domingo.

A água escorre fria sobre o peixe na bacia. o sol alcança as primeiras flores lá fora em contraste com as sombras nas paredes igualmente opacas formando geometrias possíveis sombras de gatos que se movem sorrateiros.

a água escorre pelo desenho dos seus lábios. é da cor do invisível.

Posso me justificar, poderia fazer isso a vida toda. Seria apenas um detalhe sujo na manga da camisa ou um grão de poeira no escuro, inclusive, esqueço recados sem aquele amadorismo pomposo de lágrimas contidas.
Apenas triste e inadequado mas não acuso objeto algum ou ser vivo algum da angustia pontiangústica de existir com todas as forças cegas da natureza, da madrugada, ou seja, ela esvoaçando em mim, flor de cereja, de lembrança em lembrança a grandiloqüência patética dos sabonetes de argila ou o áspero dos uniformes militares lavados à máquina, por donas de casa que não verão seus filhos retornarem e talvez no asfalto preto de uma noite qualquer vislumbre o seu rosto e seu cheiro brilhando na chuva em gotas alaranjadas de luz.

Recuso-me entender. Sonho dez vezes ao dia e poderia saborear os detalhes mínimos se ao menos dormisse, cubro-me de nuanças delicadas que se desintegram ao primeiro toque límpido de consciência fracionada assim, como a vida, sonho nas superfícies instáveis dos prazeres rápidos prazeres completamente expressos pelo clown depressivo e egoísta que sou. a forjar seus pequenos frascos de encantar pessoas como sabem fabricar pós mágicos, as fadas horrendas do noir...

16 novembro 2007

Pêra

Mordê-la sumo
sugar-lhe a polpa branca
por dentro:
alvo silêncio

e sua delicadíssima pele
com um cabo preto cravado
os dentes

a primeira mordida,
em água doce,
a gente
nunca esquece


a melhor pausa
do dia é
parar
para
deliciar-me na
tua pêra
madura

13 novembro 2007

Frutas tropicais


A pinha

Há mais de uma semana doente que sua mãe só fazia sopa e ele nem saia mais pra brincar lá fora. Até da escola sentia falta pegou nos cadernos pra rabiscar e viu que fez a mãe mais alta de todos na casa era sempre frio e pesado feito chumbo seu pai bebia e crescia barba e tinha medo de que ele não saísse mais pra trabalhar quando tinha que buscar pão na padaria ia alegre na lama até o asfalto trazer leite e uma garrafa de pinga.
Sua irmã tinha uns olhos de fome que não cabiam na cara parecia que ia sugar sua mãe inteira. às vezes tinha raiva dela que só sabia chorar leite egoísta e tremer de frio com aqueles enormes olhos pretos. Não demora, Pedro, que vai chover, a mãe disse.
Voltando distraído, pesando pedras em vários tons de terra e observava as folhas recém-nascidas e como seu nariz respirava molhado aquele dia caminhava bobo e feliz.
O chuvisco frio e fraco como sua irmã Pedro parou quando viu pé de pinha. Abarrancou no mais sequinho a sacola de pão e o leite. Foi apanhando cuidadoso só as mais macias.
De repente o tempo fechou as mãos até não agüentar mais encheu a camisa, orgulhoso de levar mais do que podia além de pão, leite e pinga. Primeiro o trovão, alto, como se deus gritasse com ele o raio fulminante pé d´água daqueles que não se escapa. Foi num tiro chovendo o mundo, encharcando a lama, a pinha, o pé, o pão e a pinga Pedro tropeçou e só ia se atolando, as pinhas despencavam na lama do caminho.

Cadê esse menino que não vem? quando conseguiu voltar, trêmulo e encharcado a cinta do pai lhe esperava o pão havia virado papa e a pinga uma garrafa quebrada e vazia. Deixa o menino, a mãe dizia assim ele pega resfriado, vá tomar banho quente, meu filho.
Mas o pai com olhos de diabo mandou Pedro tirar a roupa e nu apanhou até lhe sangrar os gritos da mãe dizendo pára e os olhos da irmã arregalados esgoelando suas últimas forças, sem pão e sem leite. A barriga da família vazia e Pedro de castigo no quarto, igual um bichicho ferido, desejando morte e vingança e depois não desejando nada. O coração batia estraçalhado as costas cheia de feridas que iam amarelando com tempo até secarem cicatrizes na cozinha o cheiro de cebola frita da sopa que Pedro não comeria.

Frutas Tropicais



As pintangas

Era feriado gordo, lerdo, cheio de moscas pousando em volta. Janaína, ou Ina, como era conhecida nos becos e bocas bocejou seu bafo de moça no cangote da mulher com quem dormira na noite sabe-se-lá qual, chacoalhou a morena, chupou pitanga com café preto. E foi só pingar no estômago, devolveu até as bagas. Contorcendo-se de nojo na privada, expulsando o café ainda fumegante nas narinas, na boca cheia d’água mole e quente.

A outra acordou meio o-que-é-que-eu-tô-fazendo-aqui? e foi encontrando suas roupas, uma saia lilás e duas pulseiras, a blusa, onde é que botei minha blusa? Janaína disse pra ela dar o fora bem rapidinho, bem rápido, que ia é botar fogo naquele cabelo falso de piranha, cheio de alisante e secador. Quando a outra se mandou, sem saber porque, começou a chorar. Passou logo, foi retocar o rímel.

Janaína não tinha fome nem o que comer, então ia cheirar mais um pouco. Geladeira. Iogurte estragado, pitangas velhas e a garrafa d’água vazia toda embaçada de frio por fora. Pensou em sair, dava sonolência e um desânimo tão grande que devia mesmo ter quebrado a cara da outra, algum móvel, um vaso, mas estavam todos espatifados cacos no chão. Cheirou mais um pouquinho e, claro, Babetty chegou no mesmo instante, entrando sem bater. Sentiu o cheiro do veneno, veado? veio voando! Loura tingidíssima, da rua, da vida, super-nem-aí-ó-que-te-mato. Ótima. Escancarou os dentes amarelos. Que cara, heim, Ina? Ah, vá te foder.

Faturou ontem não, meu bem? E queria um pouquinho também, adorava um pózinho básico. Foi falando sem parar: meu sonho, Ina, é cuspirem na minha cara e espalhar dez gramas, deixar minha cara branca que nem a tua tá agora, depois passarem a língua, nariz, me lambusarem toda de língua, pó e cuspe. não te disse? achei a sandália que é minha vida! vamos fazer comprinhas, que tu anima, mulher! que cara!

Ina explodiu, entediada. Vá pra puta que te pariu, bicha, cheira teu pó de merda e some com teu cu daqui. E ficou ali pasmada, roendo as unhas, descascando o rosa cintilante delas, enquanto a porta batia desaforada estourando tímpanos. Em seguida, abriu outra vez, a loura ofegante e sorriso rasgado na boca rachada: ah, esqueci, biscate, vim aqui te dizer que tua biba morreu. Foi semana passada, enterraram o diabo e ligaram em casa pra avisar. E a porta bateu forte, desta vez, triunfante.

30 outubro 2007

Fendas e Seixos

Morreu
querido amigo que morreu.
Não era exatamente seu,
passou aqui sinal de luz

Morreu
sem saber sente que viveu
seu corpo sangue sobre o chão
passou aqui sinal de luz

Morreu
sete cabeças sobre o ar
a sua vida foi maior
O Sangue e a Cruz,
Ele tombou

Viveu
com qualquer coisa de
seu
pedindo um gole de ar
não era exatamente seu
aquele morro do Azar.

Sem saber como ele se foi
Suportou cacos sobre o chão.
Sangrando nu aos pés da cruz...
A sua vida foi maior
...
A sua vida foi-se à luz...

23 outubro 2007

Dia das Bruxas

Tinha medo daquela rua. Do que se dizia sobre a rua de madrugada, era perigo. Fazia frio até dentro do casaco. A escuridão rasgada em fachos alaranjado-óleo nos postes. Um grilo riscou a noite e latidos de um cão longínquo, muito além do grilo, deixaram tudo mais amplo e sombrio -até as janelas com suas mandíbulas cerradas negavam qualquer apelo do meu frio. Tudo era uma solidão contínua a passos curtos, teria de caminhar mais sete quadras até a porta da quitinete se quisesse um pouco de calor úmido, uma noite de sono, sem sonhos, pesada, pesadelos. Segurava as chaves na mão, para me sentir mais próxima.

Passos. Seriam passos? Sim, ouvia-os nítidos e apressados em minha direção e se fosse um assassino? se fosse, andaria às plumas, discreto, sem fazer ruído. Não sei, na verdade, como andaria um assassino, é aquele tipo de coisa que ninguém comenta enquanto mastiga seu sanduíche. bobagem, é apenas alguém por aí apavorado feito eu até com a própria sombra. deve ser um velhinho resfriado, levando o cachorrinho pra fazer pipi, passará reto e sem olhar pros lados.
Além do mais a rua termina logo na próxima esquina bem iluminada, embora, estivesse entre essas árvores que metem medo chacoalham suas cabeleiras verdes curvando o pescoço pra resistir ao vento e uivam um assombroso anúncio de tempestade.

Se tivesse bebido, pelo menos, não me lembraria de como fui parar em casa e, onde quer que seja, estaria ao menos mal acompanhada, quem sabe algum estudante pretensioso e chatérrimo enchendo tanto meu saco que não sentiria nada além do sono. não seria de muita serventia ter um deles aqui agora comigo poderíamos apenas gritar e correr juntos, ele gritando mais que eu: quem poderá nos defender? Seu Foucault Colorado? Um horror compartilhado apenas. mas nenhum deles me ofereceu carona.

Só os gatunos são silenciosos, os assassinos não, que o mais divertido em matar deve ser o terror nos olhos da vítima. Poder acuá-la num beco à disposição de todos seus caprichos sádicos, além de quê esses passos me seguem com toda certeza, diria até, que tentam mesmo me alcançar. Mal podia mover as pernas frias tal o arrepio gélido a percorrer minha espinha dorsal. estava toda travada. não ignoro que há coisas bem piores que a morte -e que todas a antecede.

Veio numa espécie de grito íntimo que seria à facadas! já podia ver o reflexo persecutório da lâmina prata na escuridão sem lua... seriam múltiplas perfurações nos órgãos internos e uma na garganta, mas sem antes me retirar as tripas, talvez até fizesse alguma pausa - para saborear melhor sua presa. Lembrei do caso da garota golpeada dezessete vezes na rua -em nenhum ponto letal, para morrer esgotada lentamente, dentro de sua própria casa, seus pais, amigos, chamando do lado de fora, preocupados e ela engasgada no próprio sangue, sem pedir ajuda.

Televisão deixa a gente assim.

Uma vez rasguei sem querer um naco de dedo na ponta da faca,  tentando abrir a latinha de ervilhas. A sensação é curiosa: a lâmina afiada penetra em pura manteiga macia, entrando na carne na verdade na hora não dói a pele simplesmente se rasga e depois arde um pouquinho mas lá estava meu dedo pateticamente pendurado na pele minando sangue pra todo lado. Encharquei todo o chão, empapei dezenas de panos-de-prato até que no pronto-socorro costuraram meu dedo de volta a cicatriz fez um anel de carne em volta do dedo, até gosto da cicatriz, minha mãe dizia que um dia eu teria um anel de verdade ali.

Era coisa de gente de requinte, especializado naquilo que gosta, matar daquela maneira a menina! dezessete vezes em nenhum ponto letal. Se gritasse agora soaria ridículo, talvez a polícia viesse correndo me prender porque incomodo os vizinhos tarde da noite, na rua, e me jogariam amarrada no camburão, por histerismo...Como da vez que dei uma machadada no espelho, por puro ódio, porque não encontrava meus sapatos, estilhaçando meu rosto, com cuidado, varri os cacos e joguei fora os fragmentos da garota que morava comigo, mudou-se de casa depois disso, escondi o machado e me senti muito bem, sem espelhos, sem garotas assustadas pra dividir a quitinete. Ninguém. Até que uma assistente social  veio em visita súbita notar a ausência na parede desenhada em tom azul mais claro.
Perguntou o que havia na marca de ausência na parede... um quadro feio que tirei daqui. E a mulher ficou branca com a minha mentira disse até que o espelho era da tia da garota, notadamente conhecida por Cleonphes, e que este pertencera à avó da avó da desgraçada,você sabe quantos anos tinha esse espelho? Uma relíquia.

Cleonphes, pensei, alguém com esse nome não deveria nem ter nascido.

Moro completamente só há sete anos. As visitas irregulares do carteiro vinham me perturbar com contas de luz, traziam bons conselhos como economia e um pedaço de torta de frango que acabava dando ao cachorro de rua que vive aqui perto imiscuindo-se em minha vida, como anda, querida, os namorados? perguntou minha mãe, mexendo a colherinha na xícara, provocando ruídos insuportáveis, eu notava os pêlos ao redor do seu buço e tinha ganas de arrancá-los um a um com pinça.

Magra desse jeito, dizia ela, você não se cuida. Essa olheiras, minha filha, esses cabelos secos. A minha imagem doente e delicada como a de uma flor desfalecida, sempre respondo do mesmo modo, evasiva, ela sabe, que quebrei o espelho com um machado, desde então, trata-me com mais temeridade.

Mais dez passinhos e me livro desse medo nauseabundo, o vulto passa por mim e suas mãos me assustam quase urro preto, invisível e pesado. Pára meu coração também e recomeça rebumbando louco me pedindo pra correr e ele chega, aproxima-se, sinto sua presença fria, pergunta: Tem fogo? segurando um cigarro nos lábios. Tenho, digo tímida, porém controlada. Estava no bolso esquerdo do jeans ele olha inexpressivo, insinua sua boca, cigarro pendendo nos beiços. Passo o isqueiro para ele, suas mãos são frias. Não sei porque faço isso, mas sorrio para ele - que não nota, só queria fogo.
Fico um tempo parada, idiota. Vendo o cara dar o fora, me sentindo mal com essas paranoia estúpida, de repente, corro atrás dele antes que pense minhas pernas mais resolutas que eu, tinha um rosto bêbado e bonito e os olhos paraciam ter algo a dizer a noite toda, quem sabe, não fosse um cara bacana. Agora sou eu quem o persigo. Minha vítima. Quase corro, antes que ele dobre a esquina, penso.

Ei, peraí! Estanca a sola dos sapatos e me olha. Tem cigarro? pergunto ofegante, fôlego de fumante é curto nesses dias frios. É bonito mesmo, ou me parece. Era o último dele, merda. Mas a gente pode dividir este aqui, se quiser. Vai dizendo e sentando na escadaria de um prédio supimpa, meio estilo holandês, dá um trago rápido e passa sem se virar pra mim. Fico ali de cabeça vazia e ele quieto o tempo todo, traga, solta, passa. Escuta..., diz e pára. le volta a cara meio torta pra mim. Agora percebo que gosto dele porque é um pouco torto e tem olhos bêbados castanhos, com olheiras fundas como as minhas. Talvez me desse um tapete quentinho pra deitar, ou quem sabe pudesse me acompanhar uns três quarteirões até em casa, entrar pra tomar um chá...

Talvez devesse me oferecer, mas estou tão cansada que se ele topar, quem sabe, seria incapaz de vencer esse sono que resolveu vir de repente depois de cinco dias seguidos. Além disso, ele pode até morar mais longe e daí o risco de andar mais e mais, não compensaria. São só mais alguns quarteirões filhos da puta pra mim, e pronto. Começou me olhar diferente, uma energia tensa nos olhos como que adivinhando o que eu penso, o cigarro chegando ao fim. Levantou devagar, batendo o pó das calças. Vou indo nessa, obrigada pelo cigarro.

Então ele olha para longe e dá o último trago no cigarro e nem liga, agora com mais calma, solta, arrota cerveja e deixa a brasa esquentando o dedo então solta a bituca na escada e a esmaga com o bico do tênis e entra por ali mesmo, no prédiozinho holandês supimpa.

Dobro a esquina, suspirando e desapareço. Até que no fim deste imenso quarteirão atrás do prédio velho onde moro enfiada em um dos buracos de cimento protegida quem sabe de meias quentes nos pés e o vinho que não terminei na geladeira, minha televisão-companhia. Era girar a chave ouvindo o barulhinho bom das fechaduras abrindo-se aos nossos propósitos, apertar o molho mais forte nos dedos -um choque metálico, giro a chave depois meu corpo moído mergulha no hálito quente da sopa de ervilhas aquecida no microondas. Nunca mais vou à festas chatas em que ainda por cima tenho que voltar sozinha, prometo-me.

Não dá tempo entender a rápida dor aguda vinda do além, espécie de vingança cósmica, só pra exibir seu poder malévolo, feito ataque surpresa de marimbondos que a gente simplesmente nem sabia que estava metendo o bedelho no território deles, molestando... mas eles ficam putíssimos e se vingam. na cabeça com uma bruta força um filete de sangue escorre da testa ao nariz que estou quase morta numa paulada só, ele esmigalhou meu crânio. O vulto preto, invisível, deixa a mostra enorme pedaço de pau pousado inocente ao meu lado, enquanto mexe em minhas calças, no bolso ao lado do isqueiro, encontra uma nota de dez diluída, que eu havia esquecido da existência há séculos. Devo ter lavado a calça jeans na máquina umas dezessete vezes? Dezessete.

Pega meu sapato, examina, é velho e sujo. no outro bolso, descobre o isqueiro. o mesmo que emprestei pro rapaz bêbado e filho da puta, que nem me convidou pra entrar em sua casa, pra participar da sua vida, pra tomar um café antes de dormir, pra me acompanhar até em casa e trepar comigo, falar sobre Camus e Joyce e ir embora amanhecendo, mas esquecer o relógio. Puta bandida! Anda por aí sem dinheiro? Acho que escarra em mim e mete uma bica em cheio no meu estômago. meu corpo raquítico é arremessado pra trás, as costelas ainda têm tempo de doerem. O baque é surdo. Não reajo. Risca o isqueiro, não funciona, o gás estava acabando mesmo. Atira-o ao chão bruto e o espatifa inteirinho. Pega a nota e sai andando rápido, sem olhar pra lado nenhum esquece o seu pedaço de pau na calçada fria pra caralho. Então me lembro de olhar a chave enfiada na porta que ele nem notou que podia entrar. E rio.

20 outubro 2007

Primeiro Amor Revisitado

as velhas ruas acusam
jardins maldosos
metem os olhos dentro
dos quintais alheios
das feridas
abertas as janelas
distraidas observavam os
novos vizinhos

pernas magricelas passeavam sapatos e fitas amarelas
o irmão empurrava a bicicleta nova
iam brincar na pracinha

e lá me fui com eles
sem saber
ríamos por muitos dias
pequenos monumentos de mármore
cobrem os jardins de cadáveres

éramos secretas carícias com olhos
de malícia ele
subiu até o mais alto da árvore enquanto eu
gritava lá embaixo cuidado mas sua audácia não tinha limites porque era amor nas alturas

despencou num baque seco
e mórbido seu olhar de vidro
aquele que não esqueço a noite
antes de dormir
ainda grito

17 outubro 2007

Veslumbramentos

guardo
musgo-escondido
no escuro
das caixas
lembranças
dos meus cabelos compridos que
penteava
com a brutalidade mansa que a mão
da minha mãe
sabia

me olhos nos olhos
o espelho rouba
as cores dos dias
me pousam
no rosto rugas como a calma
dos passarinhos

há muitos e velhos
dias os jardins
eram outros
meus pés descalços
de menina corriam
esmagando pétalas
revoando pombos
que bicavam milho

recortada em sustos
mantenho
intacto
o outono
uma rosa
bonita
agora
murcha
que recolho
humilde entre espinhos

sempressa
degusto
o caldo
suculento
do sumo
da vida

16 outubro 2007

Desbiografias- Fidel

Medo do Fidel todo mundo tinha. Não fora criado no cocho, entre os seus, nascido filho da prostituta Celeste que com quinze anos de boas faces agarrou barriga de si, tendo seu velho tio a agarrado antes.
E meses depois das padecências do parto esmoreceu-lhe as faces e duas semanas depois em certa noite de festeirices ela ainda com menino no peito e homens que lhe consumiam mesmo com dores nos quartos, apagou-se na repentina. Encontraram tempo depois seu corpo decomposto por homens que abusavam dela muito depois de ter-lhe ido a vida e coisas que vinham podre há tempos purularam na sociedade bem-vestida.

Fidel foi por fim adotado por certa senhora de sociedade que encasquetou-se que queria rebento seu não havendo filhos próprios com o Senhor seu manso marido, cinqüenta ou sessenta anos de mais primaveras, mas fazendeiro muito rico.

Fidel cresceu guapo e cheio de peraltices, de menos ignorâncias, no que sabia ler e embustear os coleguinhas arrumou de certa feita arruinar com os coelhos de criação no quarto de Dona Adelaide que jurava de rezas juntas que aquilo era o demo, filho da puta Celeste.

Mas foi quando Fidel tomou pêlos na cara e se tornou socialista, após ler teorias dicotômicas de um rabino judeu, fanático, chamado Karl por conta disso, que adquiriu o temível e terrível hábito de delatar colegas e extrair-lhes confissões às custas de seus bagos. tais feitos o designaram com o secreto porém sinistro apelido de Fidel, te Castro, ou simplesmente Fidel Castro que no futuro seria um grande ditador em uma formosa ilha e passaria a vida cercado de mulheres bacanas fazendo bananais.

Depois de negar inutilmente os terríveis boatos castristas Fidel fugiu para Rússia, ainda jovem, para não ser enforcado e lá aprendeu a esquiar, negociar petróleo e armas, beber vódká e comer russas. Aprimorou táticas de resistência armada-domiciliar com uma aborígene de 104 anos chamada Australianophitequinas Bolívar, que tinha o sonho de unificar a América e a Africa.

Arrependido de tudo, exceto de seu suposto caso amoroso com Australianophitequinas voltou à Cuba de onde nunca saíra para trabalhar como um simples vendedor coquetéis de amarula e charutos sabor cubano a dois dólares e cinco cents, sem fazer fiado.

Um dia porém iria conhecer um médico argentino que fugiu de casa montado em uma motocicleta cacarecada e juntos desafiaram os ianques em pró das microtangas minitangas pras pombas cubanas poderem voar, entre outras coisas- fator decisivo na grande explosão demográfica de 79 em Cuba.

Fidel morreu velho, ateu e risonho, em sua residência, vítima de gripe implantada por espirros secretos a serviço da CIA.

09 outubro 2007

Detalhes

porta de apartamento aberta
fio de seda negro
poltrona de couro macia
taças de vinho
tinto seco aroma de perfume no ar
vermelho sangue na boca
brilhantinho no dedo
salto quinze no pé
pelos na ponta do queixo
lustre de cristal apagado
mornas velas acesas
Jazz rouco ao fundo
água na boca
guardanapo de papel
lagosta
salada exótica
gotinhas de azeite
garrafa de vinho vazia
borra de batom na taça
tapete persa no chão
fio de cabelo, louro, lustroso
fio de cabelo negro profundo
cílios longos
olhar cintilante
na parede do quarto, Monet,
colchão king size
costas nuas alvissimas
pele de mármore
mãos ágeis
zíper do vestido aberto
rosa pulsante
sorriso perfeito
dentes alvíssimos mas
alface no cantinho
do canino
esquerdo
comentário sutilmente cruel
mágoa
nojo
zíper do vestido
fechado
Mercedes em alta velocidade
freada brusca
despedida seca
gotinha de lágrima
telefone de outra loira

08 outubro 2007

Findessemana



A música tocava baixo. Guitarras e trompetes descompassado meu coração batia sinceramente não ouvia a voz dela ao fundo me dizendo palavras vermelhas de batom como se sua boca sangrenta beijasse a boca do copo.

engolíamos batata frita desinteressado lançava olhares cada vez mais densos e demorados, os olhos pesados que mal mantinha abertos.

fazia comentários supostamente leves.

ela usava moletom amarelo-esquisito. até porque não fazia frio. seu queixo tremia um pouco e as mãos sempre que buscavam as minhas eram frias e desesperadas. me perguntava que importância teria ouví-la até o final.

o garçom nos olhava molemente descia mais uma cerveja e dava o fora, discreto e alheio aos meus protestos, queria ir embora, tirar os sapatos, acender um cigarro e relaxar no sofá de olho em algum melancólico pornô, quanto mais depravado, mais melancólico...

olhei surpreso meu rosto no espelho. e sem pestanejar mandei mais um copo garganta abaixo, engolindo amarelo. arrotei um gás fermentado que deixou a cabeça tonta.

ela ajeitou os óculos como se agora fosse dizer algo realmente importante com os dedos tão finos quase transparentes colocava as mexas de cabelo atrás da orelha e fixava os olhos em mim pra ver se estava dentro ou fora de órbita. minha graça era disfarçar.

então falava e falava e falava abrindo rindo e fechando tanto- a boca- que não pude deixar de notar que caía lá fora sobre as mesas de plástico amarelas com o símbolo da skol uma chuva fraca. faíscas de água à luz do poste.

lavando o pó das ruas.

alguém balbuciou no fundo:

A vida é uma sombra errante, um pobre ator que gesticula em cena por uma hora ou duas e depois não é mais ouvido. Uma história contada por um idiota, cheia de bulha e fúria, que não significa nada.

Então, a cortina se fechou. meus olhos cerrados para não ver o mundo girar vertiginosamente como a água no ralo como a galáxia em direção ao seu centro de massa, como o DNA espiralado que sucumbe em um ponto de mutação.

ela tocou minha mão como se compreendesse que meu problema não era exatamente nós. era eu, eram seus dedos tão pequenos e transparentes infiltrando-se em minha cabeça, acariciando meus cabelos. eles puxavam fios invisíveis de idéias e memórias e aos poucos fui sentindo asco e ânsia. despejei uma masa amarela de batata e cerveja na privada e meus olhos inchados e vermelhos miravam um rosto transtornado.

e olhava sem parar como se fosse para sempre.



quando voltei ela clamava por um beijo.

mas não a escutei, nem uma palavra, e devia estar mesmo orgulhosa do que dizia um pouco histérica, eu ria amarelo-esquisito, que não saberia fazer outra coisa.

nos levantamos. o ar abafado que a chuva fraca não conseguiu dissipar soprou bem na minha cara expectativa enquanto meu rosto pálido de madrugada perdeu aquele brilho que me mantinha vivo e atento. eu era pequenos pedaços espalhados pela noite, dissipado pela madrugada, vomitado nos becos escuros. eu era o desespero mudo da cidade e a violência sexual implícita em cada arreganhar de dentes humano.

mas nossos planos não passavam de uma noite solitária que não passava nunca.

precisava dar o fora dali, imediatamente, para longe dela dali mas o rapaz invisivelmente encheu outra vez

meu copo até a boca derramando mais um gole espumoso garganta a dentro

curtíamos a música e a chuva e fui me amarrando na língua dela deslizando pelos lábios secos de cigarro -acendia um na brasa do outro e fumava até o filtro. ela linda e amarela me pedia para ser seu namorado. eu que não sabia pertencer, que mal cabia em mim- sequer sabia se poderia sobrever àquela noite.

às vezes era assim, entendido e entediado, nas horas vagas era apenas sossego. ondas de prazer que fluiam e se regurgitavam entre nós e, desta vez, quem grita sou eu:

Em vão as mulheres batem à porta...

A gargalhada etílica desceu quente engasgando na garganta e calei, cismado. não tinha mais nada nos bolsos, nem dinheiro, nem desculpas. ela percebeu tudo, rápida e espertinha como sempre. levantou-se empurrando brusca a mesa em minha direção. senti o martini seco do copo dela cegar meus olhos. cheiro de álcool no nariz.

deixou o bar para sempre. eu sei. não que não tenha entendido, mas uma lágrima grossa rola pelo meu rosto e, miseravelmente só e sorrindo pesco a última azeitona no pratinho de louça...

e só depois de muito tempo reparo que chuva parou.


03 outubro 2007

O fogo azul

Era homem sério, comia pouco, chegava ao trabalho em ponto pensando na hora do almoço intervalo escuro na cantina palitava os dentes enquanto recolhia com a língua fiapos de carne do palito. Os colegas riam uns para os outros.

Saboreava, por fim, seu mais triste e solitário cigarro, num canto, bebendo café ralo as mãos treinadas terminavam o serviço enquanto ele a cabeça nas nuvens... Talvez o chumbo na cabeça passasse se ele, às vezes, perdia o trem sem saber como voltaria pra casa no fim de semana esperava a segunda-feira seguinte segurando firme o controle da tv não faltava nem mesmo doente ou com a tia morta.
O corpo como se juntasse sujeira da rua e do escritório que a Jandira nunca passava a vassoura até os copos descartáveis eram sujos ele adquirira uma tez cinzenta que ia aos poucos lhe apagando as cores. Ela era assim cinza-invisível com ombros arqueados entre o tédio e acidentes de carro.

Incomodava apenas a pia do banheiro sempre entupida com tufos de cabelo dentro tinha até um amor de infância engolido dentro como um nó de gravata. Seu rosto tinha cicatrizes de acne para o qual comprava potinhos de creme.

Os olhos sempre irritados e cáries dentárias de má circulação do sangue e uma sede de não sei o que que não saia nunca mas seu pior era o desespero fino nos olhos de peixe morto e o banheiro sem papel higiênico.

Às vezes as farpas no dedo doiam quando era criança sua mãe não podia livrá-lo dos piolhos nem do medo dos outros.

A irmã engravidara criança e o retardamento mental do sobrinho tinha equizemas na pele do aborto que não deu certo: o menino tinha compulsão por doces que ele levava nas visitas por mais que arrochasse a pia continuava pingando sempre acordou com gritos de despertador histérica sua ex-namorada lhe passara doenças sexualmente transmissíveis. Tinha até já dormido bêbado no tapete chorando sozinho.

Casou-se e a mulher passava o dia fazendo compras e deixava o filho na cunhada doente e dizia pra ele brincar com o primo mas o menino ia chorando porque tinha medo do primo que era doido, malvado e fedia enquanto ela saía com os homens do bairro as vizinhas viam.

Fingiam não saber até da comida que ela fazia e que ele sentia como se comesse o próprio vômito. Não era de tirar os olhos da TV nem de brincar com o filho estava apenas acostumado com o cheiro deles e suas sombras pela casa as mãos tremiam durante a noite -e agora -durante o dia seu prazer secreto era limpar os fiapos da meia que se enfiavam entre os dedos e sentir o cheiro particular de tudo que era suado-escondido em seu corpo, muitas vezes, enfiava o dedo lá no banheiro e gostava do sol raquítico da manhã enfiando-se na pele cinzenta e enquantando seu sangue reptilíneo.

Ela sentada na calçada, distraída, tirando cera do ouvido com a unha ou lixando-as enquanto ele ia trabalhar, uma vez por semana, faziam amor então tentariam mais uma vez ela passava creme embelezador na cama vestida de cetim penteava os cabelos, num coque que depois desfazia, olhava a própria bunda no espelho sorria assoando o nariz na toalha e deixava aberta a torneira da pia. Suas garras compridas o puxavam então levantou-se de pressa suava frio foi ao banheiro trancou a porta e meteu-se o dedo então sentiu invadindo o corpo uma onda de prazer agudo. Chupou o dedo e lavou as mãos, disfarçando que procurava os chinelos sempre no armário mas ele pedia para deixar ao lado da cama ela deitava felinadissimuladamente de costas e esperava subindo a camisola na altura das coxas que ele a abraçasse com aquela intensidade fria, por trás, até o espasmo terminar em bocejo esperavam azedos para poderem apagar as luzes.

Em compensação pagava as prestações da nova geladeira que ela comprava tudo em prestações infinitas o fogão embutido seria ótimo, seria, os cursos que ela nunca fazia plasmava tvs que ele pagava sua casa ia se enchendo de coisas e não se viam mais em meio as tantas porcarias as custas das horas encardidas no escritório sem ventilador e uma única janela que dava pra parede e os escarros de Jandira na pia sempre fétida a comida da marmita era a pior parte.

Ela agora queria um cachorro, pra fazer companhia. E logo lá estava o cachorro ocioso feito a dona esparramado no tapete com o rabo para lá e para cá largando bosta pela casa toda. Um dia, enquanto pegavam fogo mecanicamente na cama um curto-circuito iniciou um incêndio arrasador na casa. Súbito e incontrolável, como a vida, a casa ficou em ruínas cinzentas como eles próprios, salvo por muito pouco, a mulher porém enroscada ao filho em seus lençóis e debruns torrada viva entre gritos porque não pode se livrar à tempo de suas posses queridas os bombeiros vieram calmos observar a destruição.

A vizinha horrorizada assistia a tudo sorrindo por dentro porque deus finalmente cobra o pecado dessa gente porca. Tudo perdido. A mulher, a casa e o filho. Quase tudo, acendeu um cigarro que alguém lhe estendeu por piedade. Nada perdido, tudo foi ganho. Ele soltou uma tênue gargalhada macabra que os outros não entendiam e desceu a rua madrugada adentro, o cachorro chamuscado o seguia.