os dois se mediram sorrindo ela apressava o foco lá atrás como se a paisagem importasse. ou estivesse realmente perdida. olha estático, procura o que nela poderia estar perdido. e além do mais, não possuem certeza sobre quem são, embora sejam exatamente os mesmos rostos de antigamente.
será ela mesmo? por um segundo mais se olham, sorriem e então se entregam à fatalidade;
oi! mas como é que você tá?
linda!
ah...brigada, sorri amarelo. você também tá diferente.
diferente é o braço não dado a torcer.
inegavelmente estavam mais belos, a pele melhorada como se houvessem se livrado de um espinho fino e penetrante cravado nos pulmões. o rosto iluminado de ambos os lábios não mais se comprimiam para conter uma fúria aqui outra acolá, a língua soltousse em delícias e precisões e se tornou incapaz de insinceridades. os músculos, finalmente, relaxam e as fendas profundas dos olhos adquiriram tranquilidade. até os cabelos ganharam viço.
porque lhes acometeu a febre do prazer de não mais partilhar pequenos sórtilégios cotidianos. delitos tão mesquinhos que ia escurecendo a auréa de ambos. e assistiam de mãos dadas e muita parcialidade o declíno as suas íntimas espectativas. viam ruir as mais tenras perspectivas. poderiam ter-se estabilizado, poderiam ter engordado e se tornado mais sonsos, mas incessantemente procuravam alçar voo juntos como um par de gaivotas desaparecendo no horizonte do mar. só que cada uma acreditava saber melhor onde encontrar a maior dardinha prateada.
e isso cansa.
de que adianta ser tão profundo se ninguém vai até lá trazer à tona o brilho que você esconde, se não fazem mais questão de resgatar a pérola torta no oco da sua concha brilhante? melhor se arreganhar ao mundo. botar fora os dentes e as tripas. e seu grito de guerra será um colorido riso de menino, como um delicado e úmido arco-íris.
o cabelo dela cresceu castanho. ele deixou a barba afofar pacífica no rosto moreno. a gente se fala, se cruza, se separa, repara, pra quê? muito ao contrário do que era agorinha no banheiro esmurrando o porta-sabonete vazio, ela sorria tranquila.
e aí, o que você tem feito?
eu? estou fazendo sucesso. vou me babar de gabar e dizer que eu alcancei a fama, mas ela atropelou meus passos está me arrastando pelo pescoço na estrada de pedra e poeria e eu tossindo terra para a platéia aplaudir.
assim, algo aqui algo ali. e você? foco nela, foco.
estou bem. na-morando no canadá.
que merda você pode fazer no canadá? catalogar as tonalidades do gelo? fuja comigo para a argentina, garota. sempre te disse isso. bamos conhecer latinos de sangue fluído e quente, doce feito vinho. bamos beber litros da vida, sugar-lhe até a única gota que restar.
ah, que ótimo. e seu projeto?
que projeto? ela sempre tinha um. algum. qualquer um, porra
aquele seu...
ah, tenho novos projetos agora! meu deus, como o tempo passa...
então a deixei melancólica. ficamos calados por uns instantes tentando encontrar um novo elo. detesto quando fica assim, sem auto-confiança, opaca. acabo indo pro buraquinho junto dela então ficamos tímidos nos esgueirando pelos canto como dois grãos de poeria. mas depois logo seu olhar se iluminou como o mais belo raio sol na puríssima neve da montanha.
estou escalando! vamos montar um grupo no canadá tem muitas montanhas. faço parte de um grupo de adoção e proteção aos animais de rua também.
ah. quanta iniciativa. mas é incapaz de lavar a louça, incapaz de recolher suas roupas íntimas sujas pela casa, isso ela não é capaz de fazer. snowboard, sim, louça, não. além disso, eu sempre cozinhei e a cozinha sempre foi impecável e isso não faz a mínima diferença porque ela deve ter três cozinheiras e sete empregadas agora. sempre dizia isso.
como se adivinhasse o que penso ela olha a aliança. sei que olha, sei que percebe que eu estou sozinho. deixa o dedo dela enorme, o anel. uma nuvem gorda passa pelo sol o clima arrefesse. é dela a idéia de continuar falando.
continua cantando?
e seguindo a canção, senhorita. digo, senhora. ela fica perturbada, acha que não irei desejá-la nunca mais porque usa um anel feio no dedo.
é sério. parou de tocar?
vale punheta? ela cora.
onde está a merda da felicidade?
escuto um barulho irritante e surdo, como uma vibração vindo de sua bolsa.
uuu, onde será que deixei meu celular? fucinha na bolsa. parece aflita. igualzinho antes. fuça por horas e não encontra jamais o que procura, revira tudo. quando para de vibrar ela encontra o aparelho e vê a chamada perdida, suspira.
então, preciso ir.
jura? não pode...
posso.
seus olhos verdes acendem me encaram daquele jeito. maldita. um olho cego vagueia procurando por um. quantas. e seu olhar me leva de novo praquele ponto em que eu a amo e a odeio ao mesmo tempo em que ela a vejo indo embora com uma tonelada de roupas, cds -os meus preferidos, os nossos livros. e eu não corro atrás dela. eu quero, eu sou um puro suor frio na testa, respirar dói, mas nem limite máximo de uma humilhação seria capaz de retrocedê-la sequer em um passo.
será que ainda escuta nossas musicas? deve ter queimado tudo num ritual de despacho, aposto. no dia do casamento. saiu tão só, tão pequena comparada a enormidade de malas, carregava o mundo nos ombros magros. tão só, sem mágoas... sem mágoas o caralho. levei séculos pra cicatrizar. um dia na praia, até então não tinha entendido, ela ronronava o sol ia se pondo alaranjado, vermelho, dourado eu esfregava seu rosto de leopardo em minha barba, ela parou e disse por debaixo dos óculos: a solidão é só minha. nasceu e morrerá em mim. amém.
tá morando aqui, então?
é, siempre. pés no chão é a única coisa que me ajuda andar.
eu prefiro o voo, pedro.
claro, desde que alguém pague as milhas pra você curtir seu sonho adolescente irrealizável. pode fazer arte medíocre e se sentir menos torta, menos morta, menos mortal, mas os hormônios mexem com ela. as mulheres são biologicamente programadas para a infelicidade, talvez porque sejam as responsáveis pela perpetuação da espécie.
anda fazendo o quê?
eu... faço velas artesanais. vendo no calcação.
tá brincando, pedro.
sério.
então abandonou a música?
por que será que se preocupa tanto com isso?
estou namorando a madona. isso conta?
todo mundo com menos de 23 anos tem chances com ela.
não importa o sexo.
o sexo é a única coisa que importa.
e sua mãe aquela doida?
ah, faz séculos que não falo com ela.
desde então?
ela me prejudicou muito...
ah, que é isso! mãe é mãe. esses dias, aliás, eu a encontrei na rua ela fez que não me viu, não me reconheceu.
aquela vaca. bora mudar de assunto. então...
ei, garçom, dois sucos de laranja.
com vódica.
voltou a beber?
nunca parei, andré.
meu nome é pedro.
ah, é. me dá um cigarro. eu não tinha reparado, ela emagreu muito. parecia menor, mais contida em si mesma, fisicamente. mas algo nela a fazia expandir e acho que era a trêmula ondulação do seu olhar e os gestos mais amplos e relaxados. ela mexeu por alguns segundos na bolsa e localizou seu maço.
ao riscar o fósforo seus dedos tremiam. chupou seu cigarro lentamente, degustando e distinguindo cada sabor.
voltou a fumar, então. suas mãos pequenas jamais deixaram de tremer. trêmulas e frias como um filhote de pardal no inverno. fumava com muita elegância e calma, seu cigarro poderia durar dias a fio.
eu segurava suas mãozinhas achando graça. tremo por nós, dizia. por mim, pelo futuro escuro em cima do muro. tremo pela realidade a se desintegrar diante dos meus olhos pretos. ela entreabriu os lábios, enormes, vermelhos. a fumaça saia lentamente enquanto seu olhar verde-psicina lançava fagulhas em minha palha seca. e como se oferecesse a alma, um beijo:
aceita um trago?
parei de fumar, marilia.
porra, andré, meu nome é angela.
desculpa, vocês são tão iguais...