29 março 2011

através do espelho

sou superfície reflexiva
refratária
límpida e plácida
espelhada

refletindo a tua imagem
e semelhança com os móveis
de mógno e cerejeira
bem distribuídos na
tua sala

liso e avesso
atravesso teus olhos e muito aquém
alguém bate à tua porta
que ditoso
abres

tu, sólido e bem estruturado
de ferro haste e aço
machado
me estraçalha
em mil
gotículas
de vidro

espalhadas
refletem feixos
de luz à janela
e de repente me sinto
leve...

triturada
flutuo
em mil pedaços
suspensa
no ar
como uma chuva
de prismas cristálicos

e cada pequeno fragmento de mim
cerca-te envolve-te

emito cega
e dilacero a carne do teu
olho com
meus mortíferos
e luminosos
raios

25 março 2011

não aparece na foto

meu sorriso interno

é o desespero dessas melenas
querem se misturar
às folhas do vento

quando o sol atravessa
desobnubiladas idéias
pairam maripousam

sinto que somente
duas forças movem o mundo
e não sou
promessa
de nenhuma delas

quanto mais te busco
um susto
nos braços brutos de outros
espamos
te encontro
cangaço seco e submisso
aos meus vícios
mais
desagradáveis

e me entrego
a outros desesperos
esses
amores perros
pêssegos
que envenenam
meu sangue
chupá-los frescos
pela língua
e pela boca

não se afaste
nem se aproxime demais
minha sina é te ter sem ver
sem poder me tocar
que há muito tempo
já não sou mais
-que pena!
a sua

pequena

espera

sozinha
passar a neblina

não entendo
nem o que sinto
nem o que sempre soube
que sabia

me guia apenas
um filete
de luz fina
se
me atravesso nessas
águas extensas
frias
enxergo apenas
o quanto
não enxergo
nada
disso

21 março 2011

Shakes Pearl

percebi o quanto era estranho cego obtuso tudo isso. meu horror não superou a vontade de continuar ali espiando, sentindo frio e medo. era muito solitário inventar a vida. lançar hábitos para preencher o dia, café, jornal, cigarro. e não havia verdades.

feliz. algumas vezes inventei felicidade no céu no sol na água do mar mas acabou. feito brincadeira que perde a graça. sentado sozinho, na sarjeta, sentia tédio subir no calor da rua como mormaço. aquela mordaça na barriga que comida nenhuma maneirava e doía de saudade de quê? desde pequeno tenho saudade. de quê? e vazio, mas de quê? se eu por acaso sou oco, pouco falta para ser louco. Foi quando conheci Lu.

ah, sim, as mãos de papel crepom da minha vó. mexendo a panela o cheiro de arroz, escolhendo feijão. um preto outro bão. ela dizia. lhe doía o nervo ciático. arrastava as juntas duras de artrite, o pulmão fraco me soprava beijos. uma foto dela, de moça, em sépia, segurando cigarro.
sorria uma boca sem dentes os olhinhos vivos brilhando tanto -só pra mim. menino bonito. ela dizia. eu sei, minha vó também sabia dizer isso, passando a mão em meu cabelo cascudo duro de terra.

passeava de bicicleta, formava quadrilhas de extermínio na infância para combater invasores -as crianças do território vizinho. e hávia os pérfidos bandidos (imaginários) que povoavam o planeta da minha mãe. me chamava pra dentro, pro banho, pra escola, pra fingir que era a vida normal, o que devia ser feito.

logo percebi que era tudo mentira. logo não voltava mais para casa. logo foi assim que a vida me surgia natural, a vida como eu quisesse. com direito a banho de mar e psicina... assim vi que crescia, conforme as fronteiras iam alargando.

sabia lidar com os extremos de minha mãe:

uma acordava tarde, cigarro já na boca, cabelos arrepiados que ela passaria o dia sem pentear.

a outra secreta e linda. pernas com óleos perfumados e um sorriso na cara como se as buzinas da avenida fossem rouxinóis. como

uma mulher de nome fictício a outra ainda mais louca varrida varria a sala esfregando gordura onde não havia. fritava um bife esperava meu pai chegar e ele chegava. bêbado, fedendo puteiro, batendo nela por qualquer coisa de si. batia em mim também e depois ia embora levando nosso dinheiro e nosso cigarro.

uma vez ameaçou minha pobre vó. foi quando eu peguei a faca pra ele. peguei a faca e minha mão tremia. e era de ódio. e tremia de vontade de cortar macio. pele, carne, nervo, ossos, sangue e grito.

juntos então -eu e minha mãe- afundávamos na poltrona velha. ela voltava a ser suja e descabelada, chupando distraída os cigarros que escondera. eu era o primeiro a dar o fora dali me levantava, o saco cheio, a bigorna que carregava no peito, a sensação de suar frio diante da vida.

até que meu pai não voltou. saiu pro olho da rua, que é o olho do mundo, um moleque do mundo não, um duplo fascínio. minha vó sabia de mim, ela dizia "bonito" com os olhinhos de catarata.

mas criança, não reparava, tudo tinha outra dimensão. aprendi catar piolho na cabeça da minha irmã, a brincar de mentir. aprendi, principalmente, a ter amigos. quando criança tudo é questão de vida ou morte, então a gente cresce e tudo se torna questão de tempo. e vai-se esquecendo, como era mesmo, como? eu vim parar aqui, como? aliás, onde estou?

a verdade é que meu corpo cresceu, esticou mas continuo o mesmo desabrigado. a vida me colocou aqui e não quero sair agora, atrelado a ela como um enorme carrapato sugo a energia solar, qualquer sorriso pra chamar de meu, qualquer menina. coloco o boné, a calça jeans, a colônia barata. o maço de cigarros no bolso, um pacote de chiclete. e saio sábado noite a dentro. o que mudou?

aprendi a ser invisível, nulo. os carros passam por mim, as pessoas me atropela. as meninas descoladas me acham "engraçadinho". bebo uísque e cuspo nos merdas que consomem todo meu estoque de drogas, eles são chapas, são brothers, mas batizo seu pó devidamente com pó de mármore, talco, estriquinina. e bebemos na mesma mesa, falamos sobre futebol...

jamais fui feliz. jamais, por exemplo, deixei uma flor na janela de uma menina. aliás, aqui não existe inocência. as moças são soltas e indolentes, saem de casa e voltam grávidas, abortadas, sifilíticas e se tornam putas ou recalcadas.

agora:

não sei se comentei... tenho um céu azul em minha vida. seguro a mão da enfermeira enquanto digo isso. ela não quer que eu fale, ela está séria como se eu fosse seu serviço.

eu tenho um mar secreto de bosta. um par de tênis novo. o telefone dela, num pedaço de guardanapo anotado à caneta. eu tenho o brilho dos olhos dela guardado num retrato o céu vanila -o azul, amplo como morrer, como o abismo escuro e infinito no qual meu corpo pende, cai e volta. me concentro no azul do céu limpo em dia claro, como se nem tudo fosse verdade - jamais olhei assim, Lu, pra vida...você que não percebeu ainda como é flutuar no espaço e entender de estrelas, de vinhos, de montanhas e -mesmo assim, ficar triste. ser pequeno como um pequeno grilo engolindo uma libélula.

agora parado bem diante dos caminhos que se bifurcam, não sei pra onde ir, seu céu, ou UTIr. permanecer seria intolerável. ir seria futuro. desejo uma guerra, uma batalha nobre contra alienígenas maldosos, uma saga, uma morte lírica. mas até disso a humanidade se cansou.
suas armas dispensam contingente humano.

vomito sangue. a enfermeira passa uma gaze úmida em minha boca, tira uma mecha de cabelo, não está mais séria, está com medo acariciando de leve meu rosto como se sentisse pena da hora da morte, como se me fizesse dormir,

e me limpa como uma mãe limparia a babinha do seu bebezinho, com a manga da blusa. gosto dessa enfermeira de olhos esbugalhados de horror toda delicadezas com sua gaze úmida. se pudesse falar lhe pediria um beijo. o último beijo de morte ensanguentada. se pudesse falar, eu a pediria em casamento. que se fosse comigo...

as lágrimas embotam minha vista a camisa empapada de sangue, a ambulância vai macia, de leve direto pra emergência, de lá, direto pra delegacia. fico indeciso, jamais mergulhei tanto na alma de alguém como agora mergulho na minha.

comrpreendo, quando eu era criança, e ainda ia à escola, quando o que diziam não fazia sentido nem tinha a mínima importância, uma maldita pergunta me vem de repente à memória, com um suave desejo íntimo:

ser ou não ser? that´s the fucking question.

14 março 2011

rascunho

o céu clareando aos poucos devolvia cores às fachadas da avenida suja e apesar do cheiro fraco de desinfetante e água um vapor morno de esgoto pairava.

dividia o último cigarro com ela cambalendo alguma música... the cramberries, the rain, the spot motion. não me lembrava mais das letras. o frio infiltrado na garganta arranhava o pus irritado, quando a cerveja descia gelada e, mesmo assim, a boca continuava seca.

ela era a flor plácida que colhi no interior de uma lojinha de ninharias do âmago da seca e sem vitaminas, ao fundo de uma prateleira abandonada ao pó e às teias de aranhas. as aranhas que arranham leves carícias na pele suas patas tão fina.

os vultos voltam. você quer ir para frente.
talvez eu...

mentiras sinceramente ditas seriam bem mais bem-vindas que aquela secura na boca! como há dois minutos atrás. o telefone toca mas ela não toca no telefone. quer ficar. tanto a ponto de formigamentos surgirem em vias dantes percorridas apenas por arrepios.

a minha língua lambendo toda as suas costas. tudo convergindo para a ponta dos seios duros de tanto frio. procurava o casaco havia esquecido que não trouxera nenhum. tateava em busca do dinheiro que já havia gasto. sem dinheiro, sem sono, o peito ficava largo e os olhos caídos de uma emoção sutil qualquer.

quando a encontrou na curva final da noite estava adormecida no sofá de veludo vinho ao fundo do bar. dormia cílios tão grandes, tinha sonhos tranquilos opostos às batidas densas do house.

a felicidade aqui é obrigatória. quer um trago? quer um gole? quer um beijo? quer um porre de porra boca a dentro?

não queria nada. só colo. socorro. queria sentar-se de cócoras e praticar yoga. queria principalmente mergulhar nos olhos azuis. o céu claro outra vez e o mesmo gosto na boca. barata seca, vapor de esgoto, chiclete de menta, salivas e cervejas, o céu era dele e ele era um inferninho particular da capital fria.

estava, talvez fosse precipitado dizer, talvez fosse perigoso, mas o fato é que estava: feliz.
estranha satisfação de preencher seu corpo com alcool e deixá-lo dormente, ébrio e cansado. olhos presos ao copo o gelo girando mais rápida a sua cabeça vagava despersa como a fumaça luminosa de cigarros misturada a sons agudos, roupas aguadas.

bocas se rasgando em risos chupando brasa e soprando fogo pelas ventas. pensou no sabor de tequila que tinha sua língua -e se lembrou que não bebera tequila.

as cinzas batidas no chão a faz pensar um dia estaria embaixo da terra, sem batidas, sem músculos, sem música estridente, nem rapazes suados sem camisa, sem pernas femininas nem perfumes adocicados misturado aos odores do banheiro... estaria em abosulo repouso apodrecendo suavemente, nutrindo e mesclando seu corpo à terra.

ele a acorda, toca seu ombro e a retira do fundo da cova.

vamos!
mas já? sonolenta recolhe o pouco que pode levar de si mesma.

engatamos a primeira, a segunda, conta paga, a lufada de ar gelado indica que já demos o fora dali. o dia está prestes a. amanhã é o mesmo dia. o sol se arrasta com as horas e as fachadas sujas da avenida recobram suas cores apagadas. e aquela noite longa, invencível, só se notaria pelo arroxeado pálido em volta dos nossos olhos.