21 março 2011

Shakes Pearl

percebi o quanto era estranho cego obtuso tudo isso. meu horror não superou a vontade de continuar ali espiando, sentindo frio e medo. era muito solitário inventar a vida. lançar hábitos para preencher o dia, café, jornal, cigarro. e não havia verdades.

feliz. algumas vezes inventei felicidade no céu no sol na água do mar mas acabou. feito brincadeira que perde a graça. sentado sozinho, na sarjeta, sentia tédio subir no calor da rua como mormaço. aquela mordaça na barriga que comida nenhuma maneirava e doía de saudade de quê? desde pequeno tenho saudade. de quê? e vazio, mas de quê? se eu por acaso sou oco, pouco falta para ser louco. Foi quando conheci Lu.

ah, sim, as mãos de papel crepom da minha vó. mexendo a panela o cheiro de arroz, escolhendo feijão. um preto outro bão. ela dizia. lhe doía o nervo ciático. arrastava as juntas duras de artrite, o pulmão fraco me soprava beijos. uma foto dela, de moça, em sépia, segurando cigarro.
sorria uma boca sem dentes os olhinhos vivos brilhando tanto -só pra mim. menino bonito. ela dizia. eu sei, minha vó também sabia dizer isso, passando a mão em meu cabelo cascudo duro de terra.

passeava de bicicleta, formava quadrilhas de extermínio na infância para combater invasores -as crianças do território vizinho. e hávia os pérfidos bandidos (imaginários) que povoavam o planeta da minha mãe. me chamava pra dentro, pro banho, pra escola, pra fingir que era a vida normal, o que devia ser feito.

logo percebi que era tudo mentira. logo não voltava mais para casa. logo foi assim que a vida me surgia natural, a vida como eu quisesse. com direito a banho de mar e psicina... assim vi que crescia, conforme as fronteiras iam alargando.

sabia lidar com os extremos de minha mãe:

uma acordava tarde, cigarro já na boca, cabelos arrepiados que ela passaria o dia sem pentear.

a outra secreta e linda. pernas com óleos perfumados e um sorriso na cara como se as buzinas da avenida fossem rouxinóis. como

uma mulher de nome fictício a outra ainda mais louca varrida varria a sala esfregando gordura onde não havia. fritava um bife esperava meu pai chegar e ele chegava. bêbado, fedendo puteiro, batendo nela por qualquer coisa de si. batia em mim também e depois ia embora levando nosso dinheiro e nosso cigarro.

uma vez ameaçou minha pobre vó. foi quando eu peguei a faca pra ele. peguei a faca e minha mão tremia. e era de ódio. e tremia de vontade de cortar macio. pele, carne, nervo, ossos, sangue e grito.

juntos então -eu e minha mãe- afundávamos na poltrona velha. ela voltava a ser suja e descabelada, chupando distraída os cigarros que escondera. eu era o primeiro a dar o fora dali me levantava, o saco cheio, a bigorna que carregava no peito, a sensação de suar frio diante da vida.

até que meu pai não voltou. saiu pro olho da rua, que é o olho do mundo, um moleque do mundo não, um duplo fascínio. minha vó sabia de mim, ela dizia "bonito" com os olhinhos de catarata.

mas criança, não reparava, tudo tinha outra dimensão. aprendi catar piolho na cabeça da minha irmã, a brincar de mentir. aprendi, principalmente, a ter amigos. quando criança tudo é questão de vida ou morte, então a gente cresce e tudo se torna questão de tempo. e vai-se esquecendo, como era mesmo, como? eu vim parar aqui, como? aliás, onde estou?

a verdade é que meu corpo cresceu, esticou mas continuo o mesmo desabrigado. a vida me colocou aqui e não quero sair agora, atrelado a ela como um enorme carrapato sugo a energia solar, qualquer sorriso pra chamar de meu, qualquer menina. coloco o boné, a calça jeans, a colônia barata. o maço de cigarros no bolso, um pacote de chiclete. e saio sábado noite a dentro. o que mudou?

aprendi a ser invisível, nulo. os carros passam por mim, as pessoas me atropela. as meninas descoladas me acham "engraçadinho". bebo uísque e cuspo nos merdas que consomem todo meu estoque de drogas, eles são chapas, são brothers, mas batizo seu pó devidamente com pó de mármore, talco, estriquinina. e bebemos na mesma mesa, falamos sobre futebol...

jamais fui feliz. jamais, por exemplo, deixei uma flor na janela de uma menina. aliás, aqui não existe inocência. as moças são soltas e indolentes, saem de casa e voltam grávidas, abortadas, sifilíticas e se tornam putas ou recalcadas.

agora:

não sei se comentei... tenho um céu azul em minha vida. seguro a mão da enfermeira enquanto digo isso. ela não quer que eu fale, ela está séria como se eu fosse seu serviço.

eu tenho um mar secreto de bosta. um par de tênis novo. o telefone dela, num pedaço de guardanapo anotado à caneta. eu tenho o brilho dos olhos dela guardado num retrato o céu vanila -o azul, amplo como morrer, como o abismo escuro e infinito no qual meu corpo pende, cai e volta. me concentro no azul do céu limpo em dia claro, como se nem tudo fosse verdade - jamais olhei assim, Lu, pra vida...você que não percebeu ainda como é flutuar no espaço e entender de estrelas, de vinhos, de montanhas e -mesmo assim, ficar triste. ser pequeno como um pequeno grilo engolindo uma libélula.

agora parado bem diante dos caminhos que se bifurcam, não sei pra onde ir, seu céu, ou UTIr. permanecer seria intolerável. ir seria futuro. desejo uma guerra, uma batalha nobre contra alienígenas maldosos, uma saga, uma morte lírica. mas até disso a humanidade se cansou.
suas armas dispensam contingente humano.

vomito sangue. a enfermeira passa uma gaze úmida em minha boca, tira uma mecha de cabelo, não está mais séria, está com medo acariciando de leve meu rosto como se sentisse pena da hora da morte, como se me fizesse dormir,

e me limpa como uma mãe limparia a babinha do seu bebezinho, com a manga da blusa. gosto dessa enfermeira de olhos esbugalhados de horror toda delicadezas com sua gaze úmida. se pudesse falar lhe pediria um beijo. o último beijo de morte ensanguentada. se pudesse falar, eu a pediria em casamento. que se fosse comigo...

as lágrimas embotam minha vista a camisa empapada de sangue, a ambulância vai macia, de leve direto pra emergência, de lá, direto pra delegacia. fico indeciso, jamais mergulhei tanto na alma de alguém como agora mergulho na minha.

comrpreendo, quando eu era criança, e ainda ia à escola, quando o que diziam não fazia sentido nem tinha a mínima importância, uma maldita pergunta me vem de repente à memória, com um suave desejo íntimo:

ser ou não ser? that´s the fucking question.

2 comentários:

  1. @carlloskbllomarço 21, 2011

    Pts...muito bom.

    ResponderExcluir
  2. Até a metade está muito bom, depois se perde, muda o tom, passa de lírico a um certo lugar-comum. Talvez você queira terminar rápido depois. Vá com calma... o cheiro leva tempo para se dispersar.

    Jão

    ResponderExcluir