01 abril 2011

pocket stories

apesar de não olhar pra cima, sentia o céu claro abrigar os carros estacionados em linha reta. larissa enrolava a ponta dos cabelos trocando as estações do rádio. sua boca ruminava um chiclete velho.

só tem porcaria.

os óculos escuros refletiam palmeiras, dessas que parecem artificiais. desceu trôpega com o equilíbrio de um poodle sobre as patinhas traseiras. tentei alcançá-la - passos mais largos à minha frente, suas pernas pareciam enormes no salto.

e essa pressa? toco ofegante seus ombros.
preciso fazer xixi, honey.
espera, merda!
ai! a bolsa! esqueci a minha bolsa no carro...

voltei pra pegá-la e larissa já desaparecia morena e macia entre as pilastras do hall do enorme monstro-mall. agora, analisando bem, o cheiro da pele dela é como a rua que a chuva da madrugada lavou.


peço dois cafés expressos de pressa pois faz um frio de aço neste ar condicionadamente estúpido. a pele embaixo da camisa arrepia. visto um casaco, bebo o meu café e faço rodeios pelas prateleiras da livraria, para apreciar os livros intactos, novinhos, virgens. passo meus dedos levemente sobre as capas, são geladas, resistentes. tenho ganas de deflorá-los. perambulo até que

meu corpo exausto afunda numa dessas poltronas de ambulatório de grife.

na mesa o café de larissa esfria.

passo a vista por revistas. livros de culinária, obras completas de autores consagrados, livros de terapia, auto-ajuda, puzzles e HQs. o local todo infestado pelo cheiro de pão de queijo mineiro morno com capuccino

enquanto famílias domingueiras entram e saem com saquinhos estilizados cheios de livros, balas, quebra-cabeças... mastigando seus pães de queijo engordurados. meu apetite é nulo. e não me alimento desde... que conheci larissa, tenho a impressão que seu corpo tortura o meu. meus ombros se tornaram caídos e não descontraem nunca. como é mesmo que se ri de alguma piada? aliás, eu quero que todas as piadas vão passear. vou viver em um motel de luxo onde não há piadas e passarei o resto da minha vida bebendo, fumando e cheirando corpos...

paro para apreciar uma planta de folhas largas e lustrosas. totalmente plástica. a sensação plástica de conforto dos shopping malls.

enfim, encontro minha seção dileta: minha dilectomia. Pocketbooks. ah, os clássicos livros grossos e de impressão duvidosa, em versões chulas de bolso e suas capas se oferecendo nas gôndolas giratórias das livrarias...
fáceis de consumir, leitura digestível. folhas opacas que desgrudam fácil. livros que vão-se destroçando ao tato repetitivo. que se gastam. feitos pra durar pouco na estante e na memória, como certos...

a mocinha do café retira o copo de larissa na discreta e displicentemente o despeja no ralo.

jogou fora o meu café frio. sua vaca. penso, mas não digo nada.

larissa foi ao banheiro e desapareceu. e agora a balconista acha que pode jogar o seu café fora. mas antes que tivesse qualquer reação, reparo em algo que poderia mudar toda a minha vida: uma mulher. metida num vestido amarelo, exibindo um lindo brinco de pena. sua pele bonita e seu vestido esvoaçante. observo tudo em silêncio. e a venero e a odeio por ser tão linda e radiante quanto esta maldita manhã de domingo. tinha os cabelos presos num rabo de cavalo, castanhos, apaixonei na hora.

olho para a moça do balcão e, em tom de zombaria hostil, vou falar com ela. balbucio como um babuíno e num tom de lord inglês esboço meus protestos inúteis - a moça de amarelo não levanta os olhos do seu livro.

até que, puto, sento em sua mesa e pronto. de forma invasiva. a princípio, ela finge não me notar, até que a encaro inescrupulosamente.

você não pode se sentar em outro lugar, cara? disse distraída. desinteressada. a pena do seu brinco flutuando colorida no ar condicionado. ofegava, sua mão macia, um rosto de creme de amêndoas com cheiro de laît au chocolat. queria morder sua boca, chupá-la toda -bebê-la.

pode me dar licença?

não! hoje estou tenso, entenda.. a culpa não é realmente sua. mas gostaria apenas de lhe oferecer outra xícara de café, já que, entretida em seu livro, deixou a sua esfriar. olá, sou Lord Henry , velho amigo de Dorian Gray -e estou ficando velho e pútrido logo federei tanto que não poderá me ignorar.
ah...é...isso, isso não tem importância, tem? e ia se enfiando no livro, escondendo o rosto nele.

saio de sua mesa e volto. ela não se dá o trabalho de erguer os olhos.

como recusou o café lhe comprei uma deliciosa torta de chocolat e esta humilde taça de vinho, o meu predileto. este vinho que me deleita. hum...? ela aceita o vinho e, às vezes, soergue de viés os olhos verdes pra me condenar por ainda estar ali, furtando sua solidão, sua leitura cognitiva. então soltava um suspiro e tentava se concentrar outra vez. no livro.

posso...? furtivo entrego-lhe, num gesto exaltado, uma horrenda flor plástica de um arranjo na mesa vizinha.

tome aqui um regalo pra ti, guapa.
regalo? arregalando os olhos verdinhos. sorriu, enfim. graças à deus, não haveria tempo hábil! larissa voltaria como Katrina arrasando quarteirões com sua mágoa e sua maldade.


conversamos tranquilos, um agradável domingo de sol que para mim ainda era sábado tão a vontade ríamos gostoso feito velhos conhecidos quando larissa entrou, descabelada, cambaleando em seus saltos altíssimos e com as tiras da sandália soltas, arrumando o vestido, limpando os olhos borrados. mas o batom. o batom e o tom de voz estavam impecáveis, vermelhos, no rosto pálido e lhe conferiam uma beleza helênica, eterna, possessiva.

caminhou altiva até a mesa e olhava diretamente para a moça de amarelo que agora sorria sem graça, sem entender nada.

o que foi? perguntou finalmente.

larissa assumiu sua feição predileta: mártir da tragédia grega. disse sibilante entre lábios que mal se abriam, de ódio.

eu sou Medéia! e estive chorando, no banheiro. por este crápula. seu nariz escorria. os olhos vermelhos.
pedi café pra você...
enfia no cu. e vamos embora desta merda de lugar. isso fede. e olhava diretamente para a simpática rapariga e seu singelo vestido amarelo. a moça escondia o rosto atrás da petulante taça de vinho que lhe servia de escudo - a taça que eu paguei.

antes de sair, cravou suas unhas de pantera na pele macia da garota, e sussurrou: va-ga-bun-da...
a moça do balcão nos observava, escandalizada, e parecia inclinada a nos expulsar o mais rápido possível.

discretamente, tal qual dispensou o café no ralo, chamou um segurança pela linha interna; chamou o segurança, entende, apenas por segurança. a moça de amarelo, esperta como bem diziam seus olhos verdes, levantou-se altiva e lá fora, indiferente, degustou um cigarro. sozinha. a taça de vinho na mesa, só a discreta marca de batom desmentia que era uma taça intacta. eu via a marca de batom, um borro invisível na boca da taça...

dá a merda minha bolsa! puxou com muita brutalidade, parece até que ouvi as fibras da alça estirando. procurou alguma coisa, bem furiosa, fucinhando feito louca,

onde você enfiou a parada, seu grande merda?

larissa louca. arrancou dos meus ombros caídos sua bolsa de dois mil dólares. e puxou com novamente tamanha violência, que a alça finalmente arrebentou.
ficamos estáticos observando nossa dignidade ruir. e a bolsa cuspir com escândalo no chão: óculos, livros, mps, tilintar moedas, cigarros, uma boa quantidade de bolotas plásticas, smoking papers, um frasco de Dior - que deixou o local com um cheiro horrendo de pão de queijo doce, fósforos, isqueiros de vários tamanhos e cores, cremes, maquiagens - e continuou... tilintando grampos de cabelo, pinças, protetor solar facial e um celular. tudo assim explodindo exposto lembrou-me uma espécie de comédia trágica e distante. na enorme tela do seu smartphone ululavam 07 chamadas não atendidas. tudo girava ao nosso redor, larissa sem se importar, procurava algo em meio de seus pertences.

larissa louca. alucinada. a ergui. como quem restitui o trono à rainha de copas.
hoje é apenas um domingo gordo, com moscas em volta, larissa. ninguém sabe. ninguém precisa saber que esta manhã plácida de merda é a exaustão da madrugada. que o domingo é um sábado esticado e amanhecido, que já embolorou. e nós que bebemos, sonhamos e não dormimos -que não dormimos absolutamente e há séculos! e quanto mais cansados, menos dormimos...não somos nem seremos compreendidos assim como não entendemos porque as malditas plantas agora são de plástico.

uma coca em lata, ela pediu antes de olhar para as suas coisas espalhadas. o que uma pessoa vai fazer em um banheiro que....

e a moça do balcão simpatizou com ela- talvez porque me estivesse humilhando em público. serviu a coca com um sorriso cúmplice; ela engoliu dois, três comprimidos de uma só vez com coca-cola, mastigando bem -e arrotou, elegantérrima, lá fora, cheiro de churrasco, cheiro de almoço em família, jornal, macaco, praia...

isso me lembra algo!

precisamos ir, queridinha. peguei sua bolsa e a puxei pelo braço. 07 chamadas não atendidas... uma mulher com cara de um cangaceiro de bigodes bufava atrás de mim porque não eu encontrava depressa as notas amassadas no bolso pra pagar os cafés - e a taça de vinho. finalmente fui desenrolando com calma notas completamente amassadas. larissa recolhia os últimos pertences espalhados no chão e a moça de amarelo, através da porta de vidro, nos observava.

o valor da conta estava absurdamente errado, redargui.

então, vou pagar apenas o que consumi, entende? "preciso esticar mais uma". larissa sussurrou no meu pescoço. vá lá, putinha. afastou-se e meu braço caiu no vácuo sem tocar sua bunda.
então, moça...
próximo!!
a cangaceira bigoduda agora queria um salgado de presunto com frango, empanado e frito, não acompanhava mais os nomes, os novos sabores dos salgados. a moça me cobrou dois cafés.

paguei com mãos trêmulas e notas sujas e sai pra fumar um cigarro. larissa no banheiro...

tem um cigarro aí, moço?
tateei os bolsos. puxa, está na bolsa da...
sua namorada?
você está de brincadeira?
está sozinho?
por enquanto
te achei bonito.
atônito, olhava em volta, cadê as câmeras? ela sustentou a proposta. olhos fixos.
nossos corpos se inclinaram e a puxei com firmeza pra mim. enfiei vagarosamente a língua em sua boca, degustando os beiços, a língua, o hálito, as mãos por baixo do vestido -não tinha nada, nadinha. vestindo amarelo leve. levinho. a calcinha, arranquei fácil. os bicos dos peitos duros, enfiei dois dedos nela, queria enfiar a língua. a ergui com extrema facilidade a egui um pouquinho do chão e flutuamos até o estacionamento. lá. no carro dela. vermelho e dentro, na cafeteria, o celular de larissa tocava, tocava, tocava. 17 chamadas não atendidas. conhecia sua estridência de longe. nóia, nóia, nóia. merda, merda..

crápula. atende essa porra. atende, atende... a escutava gritar. em minha cabeça, enquanto fodia aquela moça de olhos verdes com cheiro de chocolate ao leite, escutava: atende, atende, atende. pensava em larissa e no seu nariz -que sangrava fácil.

desgrudamos nossos corpos suados. ela me beijou, na boca. irradiava amor até o teto do seu carro. retocou o batom, e acelerou pra longe. seu nome? seu nome...espera, espera...e vrummm, lá se foda ela.

subi o zíper da calça e fui esperar larissa, em frente à livraria. por que não atende a porra do telefone? era sua mãe, aposto.

vi quando a moça do balcão lhe entregou o celular com olhos fulminantes. ela chega:
a moça de amarelo cadê?
desapareceu.
vagabunda! e tira sua pata nojenta de mim!

larissa iracunda, procurando pó. batom. rímel. fucinhando a bolsa. aliás, muito engraçada esta palavra: rímel. rí-mel. he-man!

larissa...você deve ter perdido isso lá dentro. pára de fuçar nesta bolsa. seu telefone voltou a tocar estridente.

tua mãe, atende.

eu sempre se esquecendo de tudo, perdendo o rumo, a pressa, perdendo a coragem.

vai, lárissa! vai! atende essa porra!
ou desligo. não é justo!

lá foi ela. atendeu. então ouvi pela primeira vez a famigerada voz da mãe dela

LARISSA? larissa? onde você está? onde passou a noite? onde você está, larissa? quem está aí com você? o que você está fazendo? o que está ACONTECENDO? por que não me atendeu? onde você está? onde? ONDE? estou indo aí te buscar! larissa...larissa...larissa...espera. eu fiquei preocu... larrissa.....................................


o pneu de um Corsa Sedan preto esmigalhou o celular dela.

não está nem aí. tudo corre em slow motion. fuck all of you; acende um baseado. beberica a taça de vinho que a moça de chocolate ao leite deixou sobre a mesa. coincidentemente, põe os lábios onde a moça de amarelo colocou. isso me lembra o sabor do molhado da boca dela - lembro que a fodi por trás. e a lambi, lambi e depois bebi seu líquido sagrado do tesão -no porshe vermelho, no banco de couro vestido amarelo arriado, delícia de bunda. e desapareceu, pra sempre. larissa ainda estava ali. triste, manhosa, confusa. procurando um hidratante labial. e ainda ressentinda com o pó que caiu da sua bolsa, na livraria.

fumamos nosso cigarrillo em frente à livraria. as asquerosas famílias domingueiras com seus filhos de bochechas gordurosas continuavam entrando e saindo pela porta central. estou no mar do Haiti acariciando os peitos da larissa, chupando a menina de olhos verdes, larissa enfia um consolo na boceta dela e eu a chupo também... os seguranças se aproximam. a garota de amarelo enfia o seu delicioso dedo no rabo de larissa e a fode feito uma doida. eles torcem meu braço...
me dão um soco no estômago, sacudindo:

O velho e o mar, do Hemingway...recém-roubado, que cai do bolso do meu casaco. fuck pocket pocket books. costumava pocket books somente pela ironia do nome.

lá vinham eles, os seguranças!

fiquei realmente estarrecido quando passaram por nós sem se importarem com o maldito cheiro do meu cigarro. sou um homem ilegal, com olheiras suspeitas e uma palidez talvez criminosa, fora do contexto.

larissa voltou exultante, sorrindo feito o sol sobre nossas cabeças, o vento soprando deliciosamente em seus cabelos. subimos no carro, larissa mechendo na ponta dos cabelos, trocando as estações. finalmente uma música agradável. Arnold Layne. e eu sentia seu Dior bem ao alcance. o perfume daquela morna morena.

dentro da sua camisa o vento se espalhava azul e fresco. arrepios de alegria, ainda estava com aquela tensão os ombros...o livro recém-adquirido, larissa recuperara seu pó, e um vidrinho de esmalte. esticamos e as pernas, os braços e as mãos fizeram um sexo sôfrego sem fôlego, sem lágrimas, porque estávamos secos. estávamos ficando velhos, cinzas como ruínas apagadas em uma memória em sépia.

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