silvia espera o ônibus. olhos flácidos de quem não dormiu direito a noite. envoltos por olheiras profundas como noite gelada sente o vento secar suavemente seu rosto. observa ao lado pessoas que fingem pensar alto enquanto apenas sussurram sonhos sozinhas.
tem perfume de manhã. sorri inexpugnável e de rosto opaco- colorido de manchinhas de cigarro. quando está apaixonada pensa em suas manchas como sardas. e tem os dentes bonitos de leopardo.
escuta o rapaz de tenis, barba e mochila escutar o fone de ouvido. é bom dançar de olhos fechados. amar de olhos fechados. amar até fechar os olhos e enxergar o outro de olhos fechados.
não importa os juros o que importa é carregar o vermelho indiano, com franjas douradas e contas de rudráksha e sandálias de couro delicadamente torcidas nos pés como quem exibe uma ave exótica. uma ave leve. a rainha do circular urbano.
sentou ao seu lado uma moça tingida de ruivo nos olhos rápidos os dedos rápidos no celular enviando mensagens instantâneas@
imaginou esses dedos ágeis as unhas bem polidas ao piano, em sua vulva; o rosto sério e compenetrado. a mão trêmeluzindo no celular ia apagando fotos, e-mails, perfis sociais de um casal sorridente rodeado de amigos -todos com caras bêbedas uma praia ensolarada ao fundo de um mar esverdeado. dava pra sentir a brisa daqui.
uma a uma, força nas teclas, delete, delete, derrete ele. mas os dedos ágeis deliciosamente pálidos e compridos.
um velho olhava as fotografias do jornal. era óbvio que via apenas as fotografias e não estava lendo o jornal porque seus óculos não funcionavam mais. uma vez lhe perguntou as horas. e ele olhou pro relógio com cara de espanto, como se fosse criança e não se lembrasse o próprio endereço. admirou o punho um tempo, aquela bola de cristal que não se comunicava mais com ele. como deveria ser seu mundo embaçado agora? cheio de traços e cores disformes? depois de olhar, murmurou algo pra dentro de si mesmo e finalmente fingiu que não a escutava mais . velho cegueta. escondido atrás do jornal.
o velho cegueta:
de manhã vai à banca comprar jornal. todos dias. desce no ponto em frente à lojinha de roupas usadas-nos fundos mora uma mulata que costura, tem lá seus bons sessenta anos e é muito bonita. boa de fogo e fogão, caprichosa nos sorrisos cheio de dentes e um rosto alumiado de gratidão. ela o espera com um bule cheiroso de café e um aroma cremoso de pão. toda manhã. o velho não casa com ela porque tem uma esposa doente. é sempre assim, de dia feliz com a mulada, de noite humilhado ao lado da mulher. não escolheu nem a alegria nem a tristeza, fica vadiando entre as duas e sua aposentadoria escassa.
o velho a percebe percebendo-o raspa o pigarro da garganta e cospe um catarro verde escuro espumoso formando uma pequena poça de ranho muito próxima ao seu próprio pé.
um suspiro aliviado irrompe o cansaso de silvia. lá vem o casalzinho. ela os chama assim: casalzinho. no diminutivo porque têm rostos de criança. sempre cansados, atrasados, perdidos. será que os dois têm insônia? o que fazem tanto durante a noite que os deixa de olhos tão baixos, vermelhos, lábios ressecados e os ombros murchos?
chegam sonâmbulos. procuram um local silêncioso e morno e esperam. o ônibus chega, ela embarcar e e ele volta pra casa -os mesmos olhos baixos. acende um cigarro então assobia pra um cachorro que surge do nada e o segue abanando o rabo, feliz. e se vão sempre não se sabe pra onde. silvia se perguntando sempre.
o rapaz sonâmbulo pisa no cuspe asqueroso do velho. seu tenis desliza um pocuo deixa um rastro de lesma atrás. quase escorrega, mas seu braço apoiado do dela não deixa. eles são assim, um escorado ao outro como se não pudessem com o próprio eixo.
todos os bancos de espera estão ocupados, raramente eles conseguem se sentar. então ficam de pé, exaustos. aposto que as pernas moles. estão sempre cansados. o braço cansaço de um no ombro exausto do outro. e fitam o abstrato. com os olhos caídos. isso é que é apoio mútuo. camaradagem...
embora ela se esforce todos os dias para envesgar até não enxergar completamente nada, apesar da grave miopía que só corrigia para ler livros, seus olhos desafornudamente cruzam com os dele. e o rosto cadavérico vindo das profundezas das trevas tão lindo, tão lindo, tão pálido ali de mármore o moço-pose-de-árvore. sempre deglutindo um livro. depois que seus olhos se acham os dela não procuram mais.
ele tem a expressão facial de raízes expostas aos intempéries mas que resistiram honestamente às tempestades. uma tolice a dela. esperramada esperando o coletivo que não vem, não virá.
ela imagina que ele a vê bonita, mas sempre fatigada , sempre destruída por buscas noturnas que não combinam mais com a idade que tentava romper o último fôlego da juventudo. sua pele opaca, mas jovem, suas manchinhas invisíveis de cigarro, sardas. seus seios firmes, suas coxas grosas e cremosas.
ele a desanimava um pouco, não que pudesse realmente desviar o olhar, mas gostaria
de saber com certa urgência se estaria sempre esperando, se sua vida seria toda perdendo e achando os óculos e se os sinos badalando dentro da cabeça um dia iriam diminuir o tom desagradável de voz
e se quando cansada de não fazer nada ainda teria de sair pra pensar fumando pra chorar em silêncio a céu aberto. estranhamente exposta à galáxias e outras vidas e obscuras possibilidades de matéria que poderiam vir a ser todas dela neste planeta se soubesse sair da casquinha de ovo que inventou pra poder ser mole e viscosa por dentro.
um dia ela ouviu dizer que se ficasse tempo suficiente olhando as estrelase iria virar luz e voar luz voar anos-luz até aparecer no céu também.. acreditou porque tudo que ele dizia tinha a boca bonita dele -na qual ela confiava com calma. para além do que até agora tinha sido. seu primeiro amor estava...onde? ah, sim, casado.
estava farta das obviedades platônicas deste então. bom mesmo é puxar o homem pela barba. esse tesão desavisado que vem, vai e volta para suas pernas cruzadas em pose de não, um livro projetando a dor do peito para as páginas e os óculos grossos ocultando um olhar fino para sempre cega a todos as guloseimas do amor, cega à placa de contra-mão que: tuuuuuuum!
e buzinas frenéticas de carro rasgando seus ovidos.
tirou-a do transe de si e lá de longe ela viu todo mundo vendo um pouco mais despertos pelo susto o ônibus se aproximando e o acidente la atrás duas motos que sairam se ofendendo, sem machucados, sem pressa, sem a alegria do ônibus que vinha e abafou tudo isso.
começou a ventar forte. nesta mesma hora. uma hora em que a reladide acorda. ele foi obrigado a tirar sua fuça do livro e ver o mini-tufão de poeira trazendo folhas secas e guardanados sujos de mostarda pelo céu. a terra revolvida formou uma pequena nuvem de pó nos olhos. o outono. o vento levou alto as folhas mal arrumadas da pasta frouxa de silva e ela tentou agarrar o que pode soltando gritinhos de desespero e o rapaz de fone de ouvidos ágil como um gato saltou sobre algumas mas desistiu da maioria assim que o vento soprou ainda mais forte.
o vestido de silvia e suas folhas flutuavam alto e longe...
acompanhou com olhos mocos todo seu drama. o ônibus freou soltando uma presão de ar para abrir a porta como um suspiro mecânico, como um paquiderme de aço. os passageiros começaram a subir. não poderia mais alcançá-las.
enquanto subiam como um bem comportado rebanho ela se sentou procurou na bolsa uma pequena garrafa de conhaque que tomou com fé e coragem enquanto alguns olhares estarrecidos se voltaram para trás. todo seu trabalho de um ano inteiro.
pensou que a olhavam estranho. ou pensa que olham sempre achando que vê o que de fato não existe realmente achou que quando voltava de onde? da faculdade, a pé, sozinha. era de noite e alguém a seguia. um homem mal intencionado e não havia ninguém. olhava pra trás. ninguém. só podia ser um fantasma. riu dos seus papéis perdidos no vento. riu porque estava um pouco bêbada e muito desesperada. era o trabalho que iria apresentar assim que chegasse atrasada, a sua defesa de tese. sempre atrasada.
o velhinho e seu jornal se adiantaram para a cadeira dos inválidos, jornal embaixo do braço, o rapaz de barba e fones de ouvido passou por ela ignorando-a, como se fosse invisível. jamais poderia sorrir bonito pra ele, mostrar seus dentes de leopardo e agradecer sua tentativa patética de ajudar com as folhas. jamais.
ele se sentou ao fundo na última poltrona disponível uma mulher obesa lhe obliterou com as nádegas, não, foi com a bunda mesmo, e enorme. todos de pé, o homem de rosto magro e cadavérico de olhos vidrado na janela ou em alguma pira muito interessante dentro dele. o livro na mochila.
somos uns zumbis sonhando novidades passo penso distraída pela Vidigal. garoto idota, não me olha nunca mais. foda-se. silvia desceu e lá se foi ele nunca soube nunca saberia pra onde nem porque ele ia se um dia desaparecesse pra sempre, no entanto, ela ainda o amaria...até perdê-lo de vista, ela...
chegou esbaforida. levemente descabelada as pupilas dilatadas pelo conhaque o hálito um pouco cítrico os corpos confortáveis da platéria esperando que a louca se dirigisse ao anfiteatro. era curioso como seu coração acelerava num remorso paranóico como se houvesse acabado de matar alguém e todos ainda pudessem notar a camisa suja de sangue, os intestinos se contorcendo dentro da barriga e os gestos crassos de uma assassina.
vomitou seu discurso previamente preparado sob a pressão do dia anterior sem as folhas, sem a segurança que tinha diante do espelho pra platéia imaginária. fez o que pode, enrolando o menos possível., meu tempo bateu cravado, quinze minutos. duas garotas se aproximaram com cadernos tinham anotado tudo o que disse.
eram colegas de convivio forçado, sorridentes, deram os parabéns. isso é chato porque depois você tem de arrumar uma situação para dar os parabéns também e nunca acontece uma coisa dessas porque jamais ela fica até o fim das apresentações acadêmicas dos colegas, então permanece numa inútil busca.
pensa em convidar uma das garotas para tomar uma cerveja no bar daqui a pouco, depois dos autógrafos quem sabe lhes dá os parabéns também, caso aceite, mas... elas recusam com um aceno já quase do lado de fora, impacientes
e provavelmente sentem inveja da abstinência sexual de dois meses pra mais, muito mais, e da quantidade exorbitante de alcóol que tenho ingerido antes durante e após as refeições ...
e falam mal de mim no refeitório quando não possuem o privilégio de almoçarem em minha silente companhia.
o coração de silvia ainda batia acelerado quando um homem com a cara vermelha e dentes que pareciam implante de porcelana lhe ofereceu café pelando num copinho plástico. junto a um sorriso embaideirado e americano. tinha sotaque. simplesmente adoráveis os quarentões americanos e seus óculos enormes que vinham ao brasil duas vezes por ano em encontros obscuros sobre literatura moderna e aprendiam coisas tão inúteis e exóticas quanto o português e liam coisas como Grande Sertão: Veredas.
tinha como marca-livro um papel dobrado escrito com tinta vermelha: "fruto do mundo somos os homens... pequenos girassóis os que mostram a cara".
devia chamar essas histórias de "inacab"
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