23 agosto 2010

O rapto de cecilia

cecília, os anjos não sonham

os médicos afastaram a mãe em pânico. acompanhei os estranhos acontecimentos daqueles dias e duvidava de seus sentidos e temem tocar no assunto, como algo místico e macabro. não se deve meter as mãos em caixas velhas, revolver sofrimentos daquela doença.

o rosto da menina se apagava a cada suspiro pensávamos ser o derradeiro. na parede sua palidez se confundia com o a figura de uma criança espanhola cavalgando um andaluz branco como a candura das nuvens. cecília adorava o quadro com o qual possuía indiscutível e horripilante réplica de beleza.

a insuspeita materialidade de suas asas cintilante cecília dizia ter visto um anjo, acenando para ela do jardim e sorrindo. e que agora iriam juntos embora para um outro estado conscientivo.

o doutor alisava os bigodes, as mulheres traziam bacias de cobre com água fervente, passavam na testa da menina unguentos para lhe trazer o ânimo.
as mulheres da cozinha preparavam medicinas e poções infalíveis. cecília esmorecia de febre.

mas de repente como por milagre soergueu-se no décimo terceiro dia ágil e cheia de vida, insuflada de vento e trovão.

a sua voz vinda de outro mundo.
aos anjos pode lhes acometer o medo e todos os horrores terrenais dos quais tiveram de se livrar um dia. também podem eles se enamorarem criminosamente de crianças pálidas e sensiveis como ela.

sua luzé reverencial fulgurava um brilho inefável e nós mortais não resistiamos olhá-la.

cecilia tinha 13 anos. as mulheres seguraram seu corpo enfraquecido e dos braços de cecília viram que minava sangue. gritinhos roucos e cansados viham a tona. pequenos e inexplicáveis cortes paralelos enfeitavam sua pele alva como pulseiras de rubi. a governanta quase completamente cega pelas cataratas passava um lencinho embebido em um líquido cicatrizante, em vão.

as estranhas chagas da menina só aumentavam. e enquanto sangrava seu rosto perdia as cores, a boca quedava azulada um fio de baba lhe escorria a língua de fora resfolegava como um animal sucumbido e do pescoço veias roxas salientes emolduravam um semblante transtornado como se estivesse prestes a vomitar bílis.

eu não acredito em anjos, respondeu o doutor.

a mãe se aproximou, lagrimazinhas brilhavam no canto dos olhos e acariciava a menina. alisou o rostinho da criança.

não te vás, minha filha.

seus olhos permaneceram abertos, a boca também por um tempo estática. o quarto parecia iluminado como em um dia feliz. os pássaros cantavam ao mesmo tempo que o sol se preparava para dormir. tudo estava em paz.

o quadro na parede me pareceu fazer sentido. fiquei paralisado de terror ao reparar que a criança cavalgava em um cavalo, percebi atônito, alado! com asas transparentes estendidas, bem dissimuladas pelo pintor quase tão translúcidas quanto a defunda e seus estranhos olhos que me olhanvam mortos ou em transe...

o corpo estendido em lençóis puríssimos, aqui ou lá respingado de sangue...
velávamos o corpo. o quarto exalava o odor das flores abertas no jardim, as faces da garota foi então, não exagero, ganhando cores, como se apenas dormisse. para espanto geral.

o médico media, alarmado, o pulso, zero, não respirava. estava de fato morta? era uma angústia ainda maior e sem fim.

no décimo terceiro dia ao anoitecer a notícia se espalhou pelo vilarejo. ordenou-se que exumassem o corpo da jovenzinha ou seriam todos presos por heresia. julgados por bruxaria (dizia-se que as escravas preparavam unguentos noturnos para manter o cadáver intacto e que o senhorio até mandava fazer degolas para dar sangue de beber à menina).

a mãe, com pesares, ordenou que lhe enterrassem. emboraa seus cabelos crescecem vigorosos e os seios já despontasse embaixo do vestido, era como um desenvolvimento acelerado. a olhos vistos ela florescia e desabrochava em mulher.

no oitavo dia uma das aias notara que as roupas de baixo de cecilia estavam apertadas e marcavam uma mancha de vermelho sangue em sua pele, como se ainda circulasse vida. e o mais assutador é que as feridas nos braços cicatrizaram já no terceiro dia decretada morta e agora já nem marcas havia.

a mãe em idade avançada sabia não poder mais produzir mais filhos e ela era sua única menina. compreendia que seria abandonada completamente e traída. lhe abatia o horror de não deixar semente alguma na terra.

Quando abriru a porta para recolherem o corpo de cecília e enterrá-lo segundo os preceitos cristãos, a governanta caiu desmaiada: o quarto vazio exalavam um estonteante perfume de flores que efogavam as narinas tamanho seu poder as janelas balançavam plácidas os trincos rompidos. não havia mais nada alí.

do caso nunca se soube algo contundente.

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