06 agosto 2010

domingo no parque

Acordo em outro dia. Penso que esse dia é hoje, não é.

Agora mesmo, antes do celular vibrar, era como se estivesse vivendo uma vida que não era a minha. Por um momento não sei onde estou. Mas me dou conta rápido do que se passa. Atendo a chamada.

- Já estamos a caminho! A Lúcia se perdeu, outra vez, era para ter virado na rotatória mas ela não me escuta, alô?
- oi.
- então, ia dizendo, ela não presta atenção em mim quando dirige, você pode explicar outra vez se é pra esquerda que a gente vira porque ela insiste que...
- É pra direita.
- Direita?
- Sim, e depois pra esquerda, então já vão vendo as árvores, enormes...É tudo enorme aqui, tem uma placa tão grande na entrada que daria pra enxergar do Himalaia.
Diz pras crianças que a piscina é aquecida aqui, elas vão gostar.
- Desculpa, Pedro, acho que a gente se perdeu porque a Lúcia passou mais de dez quilômetros de onde você explicou pra ela. E eu não vimos árvore nenhuma, agora simplesmente não sei onde nós estamos. As crianças já estão irritadas...e ela não abaixa o volume dessa música.
- Eu disse pra vocês virem comigo.
- ah, disse? que ótimo que você disse e não me ajudou em nada!
- supostamente eu deveria vir cedo e reservar nossas mesas.
- mas disse que era fácil chegar...e agora sua família está completamente perdida...eu estou desesperada...
- Pai!
- Lúcia?
- Sou eu, não escuta essa louca. Estamos entrando.

Posso dizer até com certo cinismo exatamente em que ponto estou em minha vida, mas isso todos podem concluir sozinhos, este pedaço acabando rápido como um pacote de bolachas. E quem mastiga essa massa planetária-cósmica?

Meu corpo estava leve. A boca guardava em segredo um sabor diferente de tudo que já provara na vida. Delicadamente amargo. Deliciosamente meu. Uma expectativa como se a minha existência fosse uma extensão sem fim cronológico. Embora tenha aprendido a chamar de real apenas o que era triste e tedioso em tudo isso.

Como se eu fosse um amontoado sujo de papéis amassados no lixo. E tivesse direito apenas ao que fosse ficando grosso, lento e mórbido e não posso me esquecer da violência latente desses rostos humanos quando tentava me desligar. Esses olhares que só podiam ignorar. Até meus filhos e suas infinitas impotências também se pudessem destruiriam tudo em mim com seus gritos. Como quando abrem em mim um rasgo sem cura no coração, se lhes frustro algum desejo, por menor que seja.

Se pudessem destroçariam tudo, com suas gengivas em carne viva.

Os instintos insistem e permanecem, isso é tudo. A natureza é brutal e cruel. Gesta e devora sua própria matéria, regurgita vida e alimenta-se dela com uma gigantesca preguiça e indiferença.

Observo algumas rãs devorarem moscas.

O carro delas estaciona e minha mulher desce carregando uma quantidade bizarra de sacolas com tudo que julga necessário para um fim-de-semana perfeito. As crianças, mal a porta do carro se abre, atropelam-se e se espalham feito foguetes pelo parque, numa ânsia de brincar. Lúcia segue atrás da mãe de cabeça baixa e contrita.

- Ela arrancou o celular da minha mão para me insultar, insolente!
- Me dê essas sacolas, Vera, deixe a menina em paz.
- Você sempre a defende, está arruinando esta criatura.

Lúcia se afasta, é velha demais para brincar com os irmãos e jovem demais para acompanhar os diálogos decrépitos de sua mãe.

Ao longe, alguns homens retiravam com perícia e paciência seus peixes fisgados e em seguida devolviam as varinhas no tanque. Olham o vazio iluminador esperando o próximo peixe, com o espírito pleno. Enquanto isso os peixe estendidos na grama puxavam, puxavam com toda força, mas o ar não vinha e aos poucos asfixiavam suas brânquias se erguiam e baixavam até que param mortos com os olhos e a boca e as guelras horrivelmente abertos.

No silêncio artificial desses parques ouvia o canto aflito dos pássaros. Para nós, símeos espectadores da natureza, soam como doces flautas, na verdade, se alguém se detém um pouco a observá-los percebe que suas vidas e sua visão lateral de presa, seus ovos quebradiços e ninhos feitos de folhas secas, minuciosamente entrelaçadas, são tristes e sofridas. O desespero que toda essa devastação gera nesses pobres animais sem voz, sem refúgio, cujos lamentos melancólicos são confundidos lamentavelmente com um doce cantarolar, é totalmente ignorado.

Algumas mulheres tiram fotos da paisagem e do tanque artificial de peixes entupidos de ração. Faltam apenas algumas horas para meu domingo acabar e as mulheres se perdem em fantasias de beleza, retocando-se no banheiro, nos salões e nas pontas das próprias unhas, arrasto-me para esses abismos femininos, esses verdadeiros poços sem fundo, sem satisfação.

As moças jovenzinhas com as quais Lúcia não se mistura tiram fotos sorridentes para seus arquivos, para que quando suas cores estiverem apagadas pelo tempo tenham algo em mãos para parecerem nítidas.

O que deus precisa, assim como a alma feminina, é conhecer a si próprio. Isso essas pequenas filhas dos senhores ricos deste pesqueiro, apesar de graciosas, não o podem fazer, por isso, a maioria já está levemente gorda e fofoqueira. Para distinguir entre a fruta deliciosa e a que já vai podre, é preciso faro e paciência. Percebo quase assustado que também eu estou aqui a pescar. Minha varinha de bambu é apenas um disfarce dominical, um engodo pois meu anzol sequer possui isca.

Sentadas a uma certa distância observavam suas crias brincarem com outras crianças. Minha mulher muito a vontade entre estas senhoras maldosas me dava um pouco de repugnância. Mas entre aquelas pobres mulheres, havia uma sem nenhum tipo especial de atrativo, que usava um vestido simples e óculos antiquados.
Chamou minha atenção. Seu rosto branco era como uma noite em bulha, havia micro-explosões de subversão em sua boca algo se revolvia dentro. Podia sentir de longe a tristeza corrosiva sufocando sua alma em avalanches de sonhos que desmoronavam em sua cabeça, seus olhos tremiam como se uma lágrima estivesse prestes a cair por mais engraçado que pareça ela parecia plenamente satisfeita como se sua dor fosse algo transcendental e nada tivesse a ver com os minúsculos dramas das outras mulheres.

Não era bonita no sentido categórico, quero dizer, que minha esposa e sua super-dedicação à guerra contra o tempo arrasaria com ela em uma comparação fria e calculista. Mas tinha algo naquela mulher. Eu a pesquei, então. Era a ela que estava procurando aqui, desde sempre.

Desde que olhei para aquele panfleto com um belo lago de cimento estampado com letras elegantes: venha passar o fim de semana perfeito em família. Algo se revolveu em mim.
As crianças foram se afogar na piscina, Lúcia havia desaparecido entre as árvores do bosquezinho.

Então me dei conta de que aquela distinta dama talvez pudesse ser Lúcia uns anos mais tarde, se sobrevivesse às suas reflexões amargas. Não, não era uma simples e torpe atração sexual projetada. Era incrível, mas aquela mulher sabia de alguma coisa e eu precisava desesperadamente arrancar aquilo dela, deixá-la vazia para que pudesse ser novamente como as outras, ou ao menos disfarçar-se em público com uma casca de ferida seca. Aquela mulher me pareceu obscena. Precisava dividir a cama com ela, o espelho, o maná que seu corpo maduro escondia.

Tornou-se imediata necessidade aninhar naqueles braços delicados a minha alma aflita. Trocaria tudo por ela. No ato. Pois vinha dela aquele gosto delicadamente amargo em minha boca. E seu perfume sem cheiro emanava vida.

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