20 janeiro 2009

A casa sozinha

Em algum ponto obscuro aqueles olhos escondiam o intransponível e em suas pálpebras tremulava uma lagrimazinha, de pavor, recusada. Não desvencilhou o olhar enquanto o Pai dizia que não ia longe e em sua ausência fosse boa menina.

Os irmãos arregalaram imensos olhos mudos que tudo compreendiam. Então, com um beijo suave na testa da filha e o olhar triste de quem diz adeus, o homem se foi, levando apenas cigarro e uma caixinha de fósforos.

Ficou um tempo, anos, sentada, com o úmido da boca do pai na testa. Fechava os olhos e pela casa, nas paredes e nas roupas, sentia cheiro de alcóol e suor que sempre lhe lembrou o pai, tinha mãos pequenas e calejadas, tão escuras de sol.

Começou a ventar forte e atordoada correu a fechar janelas para que não levassem a casa. Tudo ficou escuro ao redor dos uivos do vento e da imensa noite que despertava furiosa, pronta para os devorar. Os meninos berravam com suas gargantas desnutridas.

A natureza os queria destroçados em ossos e açoitava seus corpos de criança. Os irmãozinhos gritavam todos ao mesmo tempo. Ela procurava, procurava tateando as gavetas: a gaveta de facas, mãos trêmulas, a gaveta de panos, tateando aos berros inacreditáveis de seus irmãos, desesperada com o pai que desaparecera na chuva brava, lembrou-se da mãe debaixo da terra, os cabelos tão compridos e vermelhos.

Então, um toco de vela tocou suas mãos, acendeu-o e começou a cantar um choro inumado, grunhindo seu cansaço, aninhou seus filhotes, cansou-se de cantar. Os irmãos adormecidos, desmaiados de tanto choro, pacificados com sua voz. A janela abriu-se sozinha, o vento apagou a chama que segurava em sua mãozinha. Era o sinal: o pai se fora.

Ela se levantou com a força de noventa anos-luz. O sono havia ido embora, para sempre. Enquanto seus irmãos dormiam e se apoiavam nela, aos noves anos, os novos olhos se abriram e surgiram dois leves contornos azulados que a cada dia escureciam duplamente maiores as pupilas estendidas que tudo viam além e para trás, novas cores, as pálpebras cresceram mais crespas e resistentes ao pó seco naquela terra que a todos cegaria, a ela não.

Seus cabelos eram nuvem, sua voz trovão, nada poderia cegar esses olhos-raios que não se fecham. Estava tudo bem guardado dentro dela a luz, o choro e a tempestade. Então foi capaz de amolecer aquele desejo atroz de desintegração da natureza, iria perpetuar-se na brisa verde e fresca dos que sobrevivem, lá fora, após a chuva, reinava a paz da Madrugada-que agora pertencia a ela, só a ela- em um céu tão limpo tão puro celestino e imenso céu de mim.

Nenhum comentário:

Postar um comentário