18 fevereiro 2011

você só sabe chover

puxou as patas até arranhar
o ar

suas orelhas enormes chacoalhando água

a chuva branca escorrida da janela é fria

e minha boca quente
embaça o frio da geladeira

um fio de baba pinga na minha perna
escorre
na rua enxurrada marrom
eu brinco
como se fosse

o sereno da ponte
em cristal e neblina
tão fria
passando
pelo cabelo
pela blusa
pelo vento


e às vezes
tão secos
&molhados

brincamos
de chover

11 fevereiro 2011

Cida escolhia meticulosamente suas vítimas. As mais coradas, às vezes as mais tristes, isso dependia de algo íntimo em seu humor, mas havia meticulosidade e cálculo. Seu ataque era implacável. Durante um momento nosso de terror -e não eram raros- puxava maciamente assunto, quase distraída, segurava em nossas mãos e retribuíamos com um sorriso cansado, mas sincero, retirado do âmago de nossas entranhas falidas, sua voz de mel satânica fluia em nossas coraçoes e como uma serpente ia se enroscando calmamente em cada fibra, em cada nervo, envolvendo-se tão lenta e deliciosamente até nos tornarmos íntimas e então descobriamos que não sabíamos nada sobre ela.

Uma noite, desesperadas juntamos cada pista. Cida era viúva, Cida havia assassinado alguém, impacientava-me merda o que isso tem a ver? que importa o que ela tenha sido? importa o que ela é, o que ela sabe sobre todas nós e o que pretende fazer com isso. Um burburinho se formou fraco e foi engrossando havia muita agitação entre nós porque estávamos irritadiças, a hostilidade destilava-se em nosso sangue e subia e descia. Cida era uma única certeza em minha vida: mais sofrimento, era bem provável que ficasse por anos nos torturando, a todas, ou que simplesmente nos deixasse totalmente à mingua. E aí teríamos que lutar. Isso formigava em minha cabeça, como algo possível e muito provável, aos poucos ia tecendo um fino futuro, quase transparente, mas fixo e real como as paredes caiadas no nosso cativeiro.


Naysha soltou um gemido baixo, queria chorar. Eu a coloquei em meus braços, mas me sentia tão fraca quanto ela, tão impotente e sozinha. Não era um efeito ilustrativo, de fato, assim como o resplandecente céu lá fora, estávamos secas, há dias ninguém aparecia com a água, nem com comida. E não podíamos dormir a noite graças àquele mostro. Teria durante muito tempo pavor de dormir sozinha. Das pequenas janelas adivinhávamos as sombras dos avisões sempre acompanhadas de um som surdo rasgando o ar, era como se estuprassem o vento.


Os turnos eram divididos entre nós durante a noite porque o esgotamento geral nos dava fortes dores de cabeça, os lábios rachados, a língua pesada como que estivesse mastigando areia. A decadência de minhas amigas seus olhos esturricados eram a minha imagem de consolo. Alguém havia deixado meio galão com água fria e se retirado. Era racionada e obviamente daria para suprir as necessidades de apenas metade de nós. O tempo todo nos perseguia aquela sombra macabra, sentia um gelo nos pés, uma queda de pressão e ao mesmo tempo uma possessão demoníaca: devemos dividir? Elas agiriam ao meu comando, aquelas mulheres-cacos, frágeis como ossinhos porosos. Devemos dividir?


Não entendi porque a primeira coisa que faziam as reféns era nos pedir para retirar toda a roupa. Talvez um gesto de humilhação, pensei, mas não dei a devida importância a este detalhe pois foi agradável estar nua e receber um jato de água fresquinho nas costelas. Sentir aquela sujeira indo embora, quanta sujeira...cheguei a pensar em cortesias, porque sempre fui muito romântica. quase ululamos felizes não fosse pelo exorbitante peso exercido pelos olhos daqueles soldados-fêmeas. Era assim que as chamávamos e um dia disse isso à Cida, em tom de brincadeira, meu deus, estava alta. Traí minha prole de meninas.


A agitação era grande, o calor talvez, a morte iminente, uma delas me trouxe um copo que bebi completamente sem pensar, não restou um único gole, voracidade de bicho as deixou com os olhos arregalados. sentia tensão em cada pelo do corpo, nos mamilos eriçados também estávamos assim. quando Cida entrou e pensei: temos de matá-la.

um olhar foi suficiente. Daakhar assentiu levemente com a cabeça. Agimos tão rápido, Cida disparou sua arma, mas quatro de nós cravamos garras de tigre nas patas fedorentas dela e eu a sufocava tranqüilamente em uma gravata, estava totalmente imobilizada, e mesmo que desta vez não estivesse sozinha, a guarda vigia jamais a incomodava em suas visitinhas.


Daakhar era sem dúvida a mais mulher menina que já vira. um anjo de cabelos macios bem compridos que brilhavam quase azuis no profundo luar. tinha um corpo comprido cor de amêndoa e seus olhos eram duas esmeraldas da cor do nosso mar, seu olhar era eterno e triste lembrava uma pequena queda d´água em um riacho doce. Água tão límpida, era assim seu olhar, verde de tanto brilho

e com esse mesmo brilho se aproximou como uma pantera furtiva cravou o pequeno punhal no bucho da vaca, revirou a mãos para rasgar as tripas, outra e outra vez. Os dentes da mulher travaram sua boca se encheu de saliva espumosa, ficou inchada e vermelha, depois rocha e finalmente esmorecida.


Daakhar era esperta, tomou cuidado para não danificar o uniforme, por isso retiramos suas roupas bem rapidamente e nos vestimos, para não manchar ainda mais de sangue, quase tudo ficou intacto mas teríamos que lavar sua camisa, de qualquer jeito, e teria de ser na pouca água que recebemos.

Fui a primeira a declarar que todas poderiam beber um pouco da água, mas seria um líquido conspurcado pelo o sangue imundo da assassinada. O primeiro pelotão se formou sedento, e feliz. Era o resultado de nossa vitória, era nosso vinho inebriante e se houvesse tempo teríamos devorado também suas tripas.


Para nossa sorte o uniforme era composto de várias peças de roupa e precisávamos delas para escapar do sol tenebroso. Depois de alguns dias sem que nos trouxessem de volta nossas roupas compreendi porque éramos prisoneiras e não havia nenhum vigia.


Estávamos nuas e isoladas há muitos quilômetros no âmago do deserto. Conhecia bem aquela região. Passeava por elas com meus irmãos nas longas travessias que meu pai fazia para vender couro de cascavel e carne salgada de gazela e comprar roupas, lenha e grãos para nossa família. O deserto tinha temperaturas muito baixas durante a noite e escaldantes durante o dia. Era impossíve fugir sem proteção para o corpo. Não nos restava escolha escolha exceto ficar abrigadas em nossa prisão e esperar por comida, esperar e esperar, torturas, humilhações e agora aquele joguinho nojento dela.


Demorei para perceber mas ela queria ver como se comportam os bichos humanos sem água e sem alimento. Quando já tinha se esbanjado até enjoar conosco, inventou essa deliciosa brincadeira, queria que matássemos umas as outras, por comida, por água. Então, restaria apenas algumas, as mais fortinhas, as que ela poderia maltratar ainda mais, ainda melhor. Nos vestimos depressa porque não havia muito tempo, para nossa sorte ela estava carregando uma mochila, com algumas peças de roupa, equipamentos, água e até um pouco de comida.


Isso não era estranho porque quando vinha para cá sozinha, costumava ficar durante alguns dias, de modo que teríamos alguns dias de distância, caso fizessem questão de nos caçar.

Mas não poderíamos voltar para a cidade, de forma alguma, pois todos sabiam sobre as prisoneiras mutiladas, levantaríamos suspeitas, nossa única opção era ir em direção à floresta, descer encosta do rio e tentar a sorte no porto, seria preciso nos misturarmos à massa de gente lá, conseguir vestidos de pano. Eu poderia tentar escapar em algum navio, seria arriscado, mas eu poderia. E também lá havia muitas mulheres viúvas, mutiladas, que só podiam sobreviver de alguma esmola. Reunimos o grupo, sete moças mal vestidas, duas meninas nuas, mas pelo menos seus corpos estavam intactos, poderiam até se casar, Ashyellën e Vayarllën eram bonitas e muito espertas, e as queria por perto, assumi o compromisso de cuidar delas, mas não havia roupas para essas meninas de modo que tivemos que as levar em nossos colos protegidas apenas por um sufocante casaco de Sargento e uma capa de lona.




08 fevereiro 2011

Jardim

aquele olhar adivinhava
e via
a tempestade nas borras do vinho
todos celebravam ela
remoía sua vida tentando espremer um sumo
adocicado e oleoso com o qual pudesse
adornar o corpo
para os derradeiros dias

aqueles olhos adivinhavam que um dia
não haveria abelhas, não haveria absolutamente
nada

e o ponto do tempo em que estavam agora parados feito fotogramas no jardim estático
era tão belo e insignificante
com uma abelha a pousar nas margaridinhas pálidas
salvas da exposição solar
que a todos aquecia

infinito por todos os lados, travessas e possibilidades
o ponto parado no tempo : este minúsculo instante
presente que
lhe deu um arrepio
profundo
veio lá dos forros do vestido subindo até pousar delicado na flor
da pele