19 janeiro 2017

Sobre fugir


Parte II


A primeira vez que o vi, era um dia de chuva, tenho certeza. Uma garoa caiu boa parte do tempo. Sabia, por exemplo, que mesmo após muitos anos ainda seríamos capazes de vibrar com as mesmas músicas, as que ouvíamos, na sala, sentados no tapete, trocando ideias malucas. 

Conheci-o no ônibus, ele sentou ao meu lado, mergulhou os olhos no celular. E num ímpeto de ousadia meio desesperada perguntei se ele poderia me ajudar a encontrar o endereço. Não conhecia nada da cidade ainda. Vim de mochila de um interior áspero e selvagem em que as pessoas perdem rápido a virgindade de todas as coisas que podem dar merda na vida. E lá estava eu: tentando sobreviver  à metrópole.

Ficamos uma fração de segundo conectados nos olhando. Quis chegar perto de sua boca e desejei que sua língua fosse lentamente me fazendo rir dos lugares incríveis que ele conhecia e dos que nem podia mencionar ainda, afinal, não nos conhecíamos. Mas t
ive coragem de falar com ele, perguntar-lhe como chegar ao endereço.

Fui àquela cidade fazer a prova. Estava bem em cima da hora e perder a prova seria perder muito. "Veja, daqui de onde você vai descer, dá para ir a pé". Quis implorar que ele fosse comigo. Talvez tenha implorado com os olhos. Mas se limitou a me instruir e seguir seu caminho, colocou os fones de ouvido, acendeu um cigarro. 

Eu estava focada em meu desespero. Se falhasse, a família falaria por meses a fio, em todas as festinhas e frestinhas possíveis. Uma imagem de horror era a decepção estampada nos rostos estupefatos dos meus progenitores: "não passou, de novo". Então, aquela prova era como um buraco negro em meu estômago.

Assim que me indicou o caminho, agradeci com pressa. A pressa típica da humanidade. Notei que ele se voltou para me ver uma última vez. Parou. Parei também. Por um mínimo momento, continuamos nos olhando. E isso foi tudo.


No caminho até o local da prova, era como se eu ouvisse sua voz e as coisas que diria, mas minha atenção estava mais focada em como seria o toque da sua pele. Nossos braços, lado a lado, a se roçarem: braço com braço, já era quase um abraço, em pedaços mínimos de carne, cheio de tremores internos. 

Não cheguei a me inteirar dos sabores que a boca dele poderia conter, pois estava angustiada com a prova. Nunca cheguei a bebê-lo líquido, pois havia sempre uns pedaços indissolúveis em seu ser. Só sei que o quis logo de cara, sem pudor e sem vergonha, como um jeans rasgado e do avesso.

E não mais o vi. Após alguns anos, sua lembrança tornou-se uma espécie de fantasma. Amor imaginário de rodoviária. 


Até que, certa vez, fui ao apartamento de um casal de amigos dos meus amigos e aquilo seria mais um rolê semidivertido, semialcólico e sutilmente desanimado, se, por alguma dessas coincidências malucas e demoníacas, ele não estivesse lá.

Quando cheguei o reconheci imediatamente. Ocupava seu lugar preferido em qualquer casa: o chão e o tapete. Era, de fato, o moço da estação Barra Funda, que me salvou no dia do vestibular. Que coincidência! Qual seu nome mesmo? Não ficou claro, para mim, se ele realmente me reconhecia. Quem diria...André.

Aquela noite. Até hoje palatável em minha memória. Gosto de lembrar, saboreando aos poucos, que adormecemos com as caras coladas. Dormimos praticamente em cima um do outro, amontoados e bêbados. 

Lembro-me de forma fragmentada. Ele fazendo cafuné em mim. A sensação dos seus dedos arrepiando todo meu corpo num rastro eletromagnético, quando passeavam distraídos em meu couro cabeludo. Nada me faria desistir daquela sensação e dormir, mas o tesão virou delírio e o delírio, um sono agitado de sonhos obscuros. Caí em teias astrais e adormeci com seu carinho.

Acordei com o sol já alto, da sacada direto no olho, em um apartamento estranho. Todos haviam saído. Havia um bilhete, pão e café sobre a mesa. No bolso, meus últimos trocados, que usei para voltar para casa. Pensei se não o veria novamente...vou parecer maluca se pedir o telefone dele? Oi, tudo bem? Então, nos conhecemos ontem e eu queria saber se você topa um cinema, depois um relacionamento, um noivado... Ri alto dentro da minha cabeça.

Mas naturalmente, tornamos-nos colegas, depois amigos. Por isso, fui convidada para acampar com ele. Estrelas. Lá no alto, muitas. André estava lá. Acendeu nossa fogueira, preparou o jantar, tocou tambor e seu violão.
Dedilhava seu violão com dedos tão ágeis, sensíveis, sua voz rouca entoando melodias lindas que ele mesmo inventava. E cantei e dancei. 
Então, reparei em um rapaz de cabelos muito pretos, tocando flauta. E foi assim que conheci Pedro. Ele sorria, bebericando licor de jabuticaba.

Dormimos em volta de uma fogueira morna, tocos enormes em brasa aquecendo deliciosamente nossas barracas. Inalamos o cheiro do mato úmido de quando fica de noite. E um bom punhado da fumaça da fogueira. Nosso pequeno rebanho de aventureiros. Pedro, André, o nosso casal de amigos em comum, e eu. 

Ah, 
Pedro era o melhor amigo de André, evidentemente. Estava na Bíblia. 

E quando o vi, senti-o em mim, como uma queda. Cilada. Labirinto, vertigem e asas. Senti que plumas saíam de seus lábios. E desejei Pedro em dobro, dobrando a língua. Porque sempre me apaixono errado.

No roteiro original da minha vida, eu teria filhos com André e seríamos um respeitável casal pequeno-burguês com pitadas de pilates, sexo grupal e empregos tediosos e respeitáveis. Mas acho que borrei a história. Fiquei confusa. Bilapidada.

Seria apenas uma pulsão no púbis ou um sentir verdadeiro?

Na noite seguinte, ficamos nus. Pedro e eu. Nus embaixo da cachoeira. Ele, cláusula pétrea. Eu, cápsula crua. E nadamos como bons amigos, sem sequer nos tocarmos. Sem ejaculações, elucubrações ou beijo. Nada além de uma boa dose de nadar nua em água escura e fria. O negrume gélido nas têmporas, para amenizar qualquer bebedeira.


Pedro me seguiu. Observou-me sem ser visto enquanto mergulhava com pólvora e pavores, naquela imensidão negra e gelada, pensava em como passei meses, talvez anos, desejando André. E nada. Até ontem seria com ele que me imaginaria nua e trêmula em uma cachoeira, durante a madrugada. E fui roçando-me a essa ideia como um gato roça as pernas de seu dono, derretida em todas as partes entre minhas coxas. 

Então, Pedro pulou logo atrás de mim, bagunçando tudo, agitando a água e segurou meu braço. Puxou-me para dizer alguma coisa. E me vi inalando vorazmente o cheiro que vinha de dentro de sua boca, o calor do seu hálito, enquanto falava bem próximo e baixinho. 

Foi, então, que ele notou. Percebeu que quando se inclinava para falar comigo, algo acontecia, eu arrepiava. Talvez tenha sido um pequeno deslize, um movimento em falso dos meus lábios, um bater de pernas desesperado. O fato é que nossos olhos vibravam diferente. 


Saímos da água e não havia nada para nos aquecer além da canga que eu usara como vestido e, ao lado, a bermuda dele. Molhados e nus nos grudamos, lado a lado, e nos enrolamos em minha canga. Ele não colocou a bermuda. 

Esticou-se passando o braço por cima de mim. Ao meu lado, na pedra, pegou seu cigarro. Acendeu, fumou bem devagar. Ofereceu, quase enfiando-o em minha boca. Fumei, tossi e tremi. Falava e ria engasgado. Queria muito disfarçar meus tremores, mas ao tentar fazê-lo, tremia ainda mais. Pedro, por sua vez, abraçou-me e estava muito quente, tranquilo e infalível, como Bruce Lee. Só os olhos, vibravam estranho, denunciando-o. 

O cigarro acabou. Ele vestiu a bermuda de costas para mim. Olhei sem desviar os olhos porque quis ver o contorno do seu corpo na penumbra do luar. Enrolou-me protetor em minha canga e voltamos assim. Em silêncio, pela trilha. Não nos despedimos. E em silêncio ainda, cada um entrou em sua barraca. 

Na manhã seguinte, acordei muito sóbria e lá estava eu sobre uma pedra enorme, gelada e escorregadia. 
Tirei minha roupa, pulei na imensidão gélida e azul da água. Com medo, confiança e taquicardia. Pedro pulou em seguida. Nadar nus tornou-se nossa rotina, em plena luz do dia, cada centímetro cúbico daquele paraíso aquático era nosso.

Foi assim, aos poucos, que Pedro me invadiu. Durante a noite e durante o dia. Penetrou profundamente meus pensamentos. Pedro e seus seis mil e seiscentos braços hindus abertos para as maiores loucuras de minha vida. Ele era simples e selvagem. André, por sua vez, civilizado em demasia. 

Depois daquela viagem, éramos um casal, um oceano de possibilidades, incluindo overdoses de sexo, porres de porra e absinto. Éramos um misto de sinto muito e sinta-se à vontade. Bebemos juntos tantos litros que poderíamos encher nossa própria piscina olímpica. Éramos o exagero em pessoas. Eu pisava leve, ele tocava flauta, eu flutuava. E fazia panquecas de frutas, durante o dia. O que me enlouquecia, definitivamente, era seu cheiro. E também o fato de que Pedro fazia o café mais forte e firmeza, com chocolate amargo derretendo dentro, do universo.

E a gente trepava muito, de tantas formas e cores escorregadias. Com todos os caprichos mínimos atendidos. 

Pedro era my fucking best friend, ria das minhas bochechas vermelhas e do meu cabelo desgrenhado depois de maratonas de séries e sexo, no quarto. Devorávamos pizza direto da caixa. Tomávamos banho juntos. Passávamos os dias isolados em uma caixa particular mais longe que minha própria imaginação. Nós não fazíamos sentido.


André nos visitava, às vezes. Ficávamos horas conversando e ouvindo música sentados no tapete, enquanto Pedro cozinhava. Fazia a própria massa do espaguete, receita da avó, e saía para comprar vinho. 
Geralmente, depois do jantar, Pedro bocejava esticando efusivamente os braços, então, André ia embora rindo meio bobo e meio ébrio. E tínhamos vontade de conversar mais, a noite toda, a vida inteira. Mas era tarde, era sempre tarde.

A vida fluía. Derreti meu pudor com açúcar e fiz meus órgãos caramelizados para serem degustados com cerveja escura e encorpada, em copo plástico. Eu inflava lentamente, a felicidade enchendo meu corpo de luz.


Então, ela. Apareceu. A amiga.


Quando tudo ficou realmente um pouco chato e repetitivo. Principalmente, quando esgotamos todas nossas doses de dopamina, senti como se minhas panquecas de frutas, a barba de Pedro, e até as músicas de André no tapete, não fizessem mais o menor sentido. E tudo ficou simplesmente chato e estranho, como as muitas noites sem dormir que passamos. 

Não havia mais jantares. André não ria mais meio bobo meio ébrio, ele mal aparecia. E quando vinha, parecia sempre atento e vigilante, passava a noite toda acordado conversando com Pedro, bolando planos para dominarem o mundo e fumando-os todos. Os cinzeiros transbordavam.

E havia, sobretudo, a amiga de André que chegou da Nova Zelândia. Tão linda, bronzeada e bem sucedida até os ossos. Estava sempre no nosso apartamento, vinha de brinde, com André. Vestidos esvoaçantes e um ar sempre malicioso, coroado num sorriso lindo com covinhas. Eu a odiei imediatamente. E não tinha como não amá-la na mesma intensidade.

Ia embora sempre bem depois de mim. Quando eu adormecia cedo, na cama vazia e ela, André e Pedro, riam até às quatro horas da madrugada. Um dia os três adormeceram no sofá. Ela e André com os rostos colados. Fiquei imaginando se ela teria recebido cafuné.

Notei que ela ficava ainda mais bonita dormindo. Acordados, Pedro, André e ela, faziam projetos artísticos para ganharem muito dinheiro juntos. Eu não me sentia convidada, nem incluída.

Estava totalmente deprimida e não podia provar o porquê. Ninguém leva intuição a sério. Exceto eu. Levo intuição tão a sério que devo criar cenários e dar brechas para que as merdas em minha vida aconteçam.


Fiz o que qualquer cão covarde faria. Fugi de minha própria fuga e continuei ali, dependente daquele vício. Pedro tornou-se uma muralha intransponível e as tretas eram tantas que preferia passar minhas horas sozinha, na pracinha do bairro, no carro, no quarto, na cama vazia.

E vi muitos pássaros ali sozinha, mais do que seria capaz de dizer e suportar.

Sentia-me isolada do resto do mundo de tantos voos suaves vistos, de tanto céu. Vi mais belezas que pude dizer. E não teria mesmo a quem contar. Eu era um arquivo indisponível para compartilhamento.

E como um looping de desgraças, foi de repente, quando eu não queria mais nada nem ninguém, que ele me veio tempestade, no diazinho frio e nublado de minha vida, o ciúme.

Perdi o trem e minha voz ficou fraca, minha cabeça pendida. Tive ódio e raiva de Pedro, principalmente porque os ouvi em nosso quarto. Nossos farelos de pizza ainda em baixo da cama, testemunhas oculares do inevitável. 

Não ousei abrir a porta. Quando Pedro saiu, descabelado e feliz, mudou a expressão para um total espanto quando viu meu corpo sacudido em soluços pateticamente mudos, na sala. Eu era um vazio embalado a vácuo. Ele me abraçou, pediu desculpas, ajoelhou. Ela saiu de fininho, imagino que sorria irônica para aquela situação ridícula, tão vulgar para sua elegância nata. Fiz que não a vi. Mas por dentro eu fuzilei todo mundo.

Nossa cama não estava mais tão vazia, afinal.  Em alguns dias, lá estava eu, ainda namorando um Pedro arrependido. No apartamento do nosso casal de amigos. Já era tarde e só não mencionei ir embora porque havia ainda muita bebida. E, sinceramente, já estava muito chapada para dizer ou fazer qualquer coisa. Eu era um foda-se ambulante e arfava. Falava alto, ria, praticamente relinchando, quando André apareceu com sorrisos, mais cervejas, uma euforia atípica. E, desta vez, ele veio sem a amiga. 

Estava sozinho, transtornado e radiante. Algo parecido com aquele André ouvindo música no último volume no carro.
A sala começou a dar leves voltas em si mesma, senti que poderia vomitar se continuasse ali. Então, levantei-me levemente zonza e cambaleante, porém, alegre - e fui ao banheiro. Ocupado.

Esperei décadas, bati. Então, ele saiu. O corredor ficou estreito e o role ficou pequeno. André me olhou. Não disse nada. Segurou minha cabeça com determinação, como deveria ter feito desde sempre, há muitos anos. Enrroscou meus cabelos entre seus dedos com calma e precisão psicopatas e sua boca foi engolindo gentilmente a minha língua. Correspondi com mais força e desejo do que esperava. Fomos à lua. 

Ergueu meu vestido, baixou minha calcinha e me tomou ali. E
 foi assim. Depois de tanto tempo, tantas idas e vidas, que provei pela primeira vez André. Escorremos do corredor ao quarto mais próximo. O sabor de André era como um copo de gelo, rodelas de limão e água fresca explodindo dentro da boca. Seu jeito de me empurrar com a pélvis contra a parede era delicioso. Seu suor tinha cheiro de mar misturado com a brisa cítrica do seu perfume. O fundo da boca, cavernas escuras, sensuais e terríveis. E ele me quis mais que eu a mim mesma. Ele me quis como se fosse ontem, e transbordamos.

Ali, no quarto do fim do corredor, em segundos, tornamo-nos doces animais. Ainda em chamas, gozados, nos olhamos e engolimos seco sem saber o que fazer com aquilo que fizemos. Pedro ria de qualquer coisa no sofá, distraído.

Ele era o melhor amigo do André. E eu só queria mais. Mais. Para o resto da vida. 


Sobre fugir

parte I

Dois dias. Dois dias e tudo seria tão diferente. Difuso, confuso e mais gostoso.

A primeira coisa de que me lembrei quando entrei no carro foi minha mãe, não sei porquê, mas vi seu sorriso através das gotas d´água em meu cabelo suado. A vida suada que ela leva, sempre de tarefa em tarefa. E fui feliz por ela. Agora seria feliz por mim.

O carro acelerou e olhei para ele. O sol fez douradas algumas mexas em seus cabelos, embora eu soubesse quão negros eles podiam ser, no chão de grama. Aquele estranho. Sentia-me como se estivesse saindo de férias e indo ali, passear - o que me deixou realmente feliz, evaporava como a fumaça do nosso papo, dentro do carro, íamos buscar alguns víveres para o acampamento, na cidadezinha mais próxima. Os outros nos esperavam.

Enquanto o carro ia a não sei quantos por hora, o som estridente dos Stones, Sympathy for the Devil, enchia meu cérebro e ele falava atrás daquela cortina de fumaça e eu ouvia, ria, fumafalava também.

Entendi, mais tarde, que não haveria outro lugar no mundo em que eu quisesse estar.

Podia sentir a vibração empolgante de André através do jeito sagaz e espirituoso de sorrir de quem está realmente feliz. Um pinto no lixo, como dizia minha mãe. Um pinto no lixo também estava eu, entre os estranhos, esquisitos, os que têm sede de birita e liberdade, posto que herdarão os reinos do Crepúsculo.

Estava atrás dessa profecia. De sentir com as mãos suadas, de doer o pâncreas, de me riscar e arriscar, de botar meu corpo como última aposta na roleta-russa da vida.

Chegamos já era quase noite. Ele me ajudou com a barraca e procuramos juntos galhos e toras de madeira para nossa fogueira.

Mais tarde, anos e anos depois, eu perceberia que desde o início ele já me ensinava, em cada gesto, em cada olhar, uma lição e eu também o ensinava com meu ímpeto de mergulhar de olhos tão fechados na correnteza incerta da chuva.

Ele nunca se chegou a mim. Era sempre eu, com uma sede raivosa, doce no final, que o procurava para conversar. Algo que de fato eu não compreendia. Nem fazia questão. Eram apenas os dias, a janela do carro, a música radioativa e estridente. Eu era a Deusa e Súdita da Deusa, eu era uma pequena capela onde se podia ficar em silêncio e dobrar os joelhos e ele era o meu milagre. O sacro-profano socando o mundo na cara, cuspíamos as sementes de tangerina na terra. Algo sempre brotava.

Dava para ouvir a cachoeira da trilha. Dava para ouvir meus batimentos cardíacos escorrendo com a água.

Finalmente, acendemos a fogueira. Na verdade, eu e André caminhamos silenciosos procurando por lenha. Depois, André a acendeu. Eu apenas me aqueci ao redor daquele fogo morno e confortável. Cantamos, tamboreamos e louvamos aos céus àquela noite doce, sem pernilongos, cheirando à canela queimada e com o sabor de licor de jabuticaba, que bebíamos.

A lua já ia alta e redonda no céu e eu estava eufórica. Levantei descalço. Ri e disse que precisava dar uma volta. No acampamento, alguns amigos já haviam ido dormir em suas barracas, porém, eu, André e Pedro ainda estávamos lá, quando me afastei, vi o contorno flamejante deles diminuindo. Procurei por um longo momento os olhos de André, mas ele não os tirou do violão. Pedro, porém, olhava fixamente para mim. Mergulhei na trilha procurando um bom lugar para fazer xixi, ouvia  a melodia do violão abafada.

Então, Pedro surgiu.

Apertou meus braços com uma força improvável e desnecessária. Também estava fugindo -não sei bem do quê, mas estava - não me importavam os motivos dos outros. Pedro era o melhor amigo de André. E eu nem sabia ao certo quem era aquele guri. Nem ele, nem eu. Então, ele afrouxou os dedos em meu braço mas seu toque permaneceu, gentil. Queria saber se eu estava bem. 

Senti-me triste, de repente, e curiosa e faminta e não entendia bem o porquê.

André era bom em acender fogueiras e construir um abrigo e preparar nossa janta. Mas Pedro era bom em seguir garotas bêbadas.

Voltamos à fogueira, tomamos o penúltimo gole da última garrafa de licor, mas isso me pareceu irrelevante, não suportaria outro gole sequer, sorria, sorria para tudo que diziam como uma perfeita idiota, mas eles riam também, ríamos todos tolos e era tão bom, como se fôssemos um hábito saudável ao sábado, praticado durante muitos anos.

Pedro puxou minha mão. Nadamos nus na cachoeira sem nos tocarmos. E, após o choque térmico, fumamos e conversamos baixinho. Tremia muito, dentro da minha toalha. Depois, voltamos molhados, com frio e em silêncio para nossas barracas. A bebedeira havia desaparecido completamente. Eu mal fechei os olhos e o céu deu à luz um novo dia.

Na noite seguinte,  André procurou por galhos e madeira sozinho, recusou minha companhia, e acendeu a fogueira com um olhar triste de compreensão. André, tão familiar e tão estranho, tão próximo e tão distante, absorto em elucubrações e uma atitude taciturna. Eu ansiava por André em meu íntimo, em meu coração, mas ele era um muro sem brechas. Por não poder beijá-lo compensei minha frustração bebendo exageradamente o licor de jenipapo que compramos no dia anterior, naquele passeio de carro em que me senti tão confortável e feliz ao lado dele. 

Quando notei, estava cambaleando rumo à cachoeira e me vi nadando com Pedro, novamente. Deixei minha toalha cair mecanicamente, desnudando-me. Era realmente uma ideia tresloucada e sedutora, e me atirei da pedra para o rio escuro.  Deixei que o frio me invadisse, os cachos macios dos  meus cabelos, enroscando-se em mim. E meus lábios tremiam, o frio cobriu meu corpo quente como cristais de gelo a cobrir uma viga de ferro em brasa.

De qualquer forma, já havíamos feito isso antes. Na água, ainda de olhos fechados, mergulhamos. Mas dessa vez, ele se aproximou mais, com um olhar voraz de fome, sentia sua respiração quente e ofegante em meu rosto, sem qualquer cerimônia, deslizou seus dedos para dentro de mim, girou-os suavemente, sentindo cada cavidade íntima. Ao mesmo tempo, massageava-me com muito cuidado. Meu corpo arqueado na pedra. Resistindo e cedendo, tremendo, sobretudo.

Entre meu ofegante querer e sua resoluta vontade, cada pedaço de pele, meus olhos, tremeram até as lágrimas. Ele queria sentir até o sabor de minhas pupilas.
Eu o comprimi com minhas mãos, querendo-o ainda mais intensamente, sua língua deslizava lenta e rapidamente, dançava roque, balada, sonata em fuga. Enlacei minha perna a sua cintura e sugava seu gosto e seu cheiro com todas minhas forças, como se a sua saliva e aquele resfolegar fossem um banquete delicioso oferecido a um animal faminto.

Gozar não diz nada sobre o que senti. Sobre como me senti. A lua cheia simplesmente aumentou de tamanho, eu podia jurar. Mas é por não haver um dizer, que fiquei em silêncio, abraçada ao meu próprio corpo, depois, flutuei nas águas gélidas da madrugada e foi assim que conheci a Paixão de Pedro. 


Voltamos de mãos dadas. O mundo estava em silêncio. Exceto por aqueles sons longínquos de sapos, cigarra, cigarros, e o dedilhar delicado de André ao violão, nos abraçamos até o amanhecer. Após um intervalo de dois dias, André, finalmente, olhou para mim.