07 outubro 2016

Hoje não, queridão

O céu clareando aos poucos devolvia cores às fachadas pálidas da avenida
a rua tinha cheiro de desinfetante velho e subia
da boca de lobo um vapor fétido que aquecia.
Dividia com ele o último cigarro cantarolando
The Cramberries, Beatles e a chuva fraca.
Não me lembrava mais das letras e o frio infiltrado na garganta arranhava quando a cerveja descia gelada e, mesmo assim bebia e bebia e a boca seguia seca...
Eu sou uma flor plástica colhida no interior de uma lojinha de relíquias libanesas, no âmago de tudo que se abandonada ao pó e às teias.
Sou meus vultos que vão e voltam, sempre iguais, rodopiam e dançam como se fossem livres de qualquer prisão.
Quero seguir em frente, sair ilesa.
Ele não me quer mais...
Mentiras sinceras sejam bem-vindas, afinal.
O telefone dele toca mas ele não toca no telefone.
Em frente a minha casa ele fazia cara de que podia ficar tanto ao ponto de forçar um sorriso.
Ah, se eu fosse dessas de chorar... Eu diria até que imploro. Mas isso, ah! Isso eu jamais vou falar. Não serei nunca a primeira e única a dizer "eu te amo" e receber um silêncio constrangido no lugar.
Prefiro a imagem da língua dele lambendo minhas costas.

Entramos e, em menos de meia hora, meio sem graça, ele procura o casaco, para ir embora. 
Havia esquecido que não trouxera nenhum.

Tateia os bolsos em busca do dinheiro, que já havia gasto.
Lá está ele, derrotado, sem dinheiro, sem sono, sem cigarros - o peito arfando largo. Confesso, que por dentro eu ria, observando seus olhos meio caídos e a boca um pouco amuada.

Restou-lhe permanecer comigo. Depois de transarmos, dormia cílios tão grandes e
tinha sonhos intranquilos como as batidas do techno numa boate.
Queria dizer que eu sobrevivia de migalhas, mas não é sobre isso. 
Eu só queria mergulhar em seus olhos em plena luz do dia e, é claro, quando finalmente saísse o sol no céu outra vez, entender o que é que eu sentia. 
Mas era qualquer coisa de infeliz.
Eu o acordo, toco seu ombro e o retiro do fundo da cova, na verdade, minha poltrona de veludo vermelha.
Você precisa ir embora. Mas já? Sonolento recolhe o pouco que podia levar de si mesmo.

Ah essa noite, meu querido, não vou correr perigo! Posso até transar contigo, mas dormir ao teu lado, nem pensar. É sobre isso. Sobre como agora eu que vou te usar.

A lufada de ar gelado na porta indica que ele já deu o fora. E que o dia está prestes a.
Amanhã, o mesmo dia.

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