20 novembro 2008

Ângela se casa

Com mãos pacientes, tecia o vestido. No espelho de bolso, um rosto branco, amplo como a imensidão vasta do mar de Ângela. Suas idéias postas em ordem cronométrica. Namorado chega, marido vai embora, enquanto ele não vem vou tecendo minha aurora. Cozia legumes, passava à mão uma receita antiga para o caderno de capa preta para receitas.
O pão de batatas, somos felizes, os sinos badalam, os sinos badalam. Ouvia voz alta de susto chamando no portão, sabia. O amarelo-fuga no jato do liquidificador, girando seu suco e além do mais Mrs. Robinson tocando alto demais. A impressão sutil de que, ser feliz assim, na própria luminosidade da tarde, é demais e perigoso.

Enquanto isso, ele, caricatura do quase-semi-civilizado, nem melhor nem pior que vós, que eu, penetrava todas concavidades dela, porque a simples idéia de possuí-las é como a de plantá-las nas coisas, nos prazeres uterinos que deslizavam grávidos de trigêmeos prazeres.

Afinal, ele, de um intenso instinto sagitário, de um homem que se amanhece inesperadamente doce e de barbas feitas, algum amor nos bolsos, feito trocados, para alumiar o peito. Ignorava os perigo a espreita, ignorava os seios dela. E ia seu coração bombeando bobagens no fluxo dos seus passos pensamentos.

Então. Bateu ao portão de Angela.

Encontram-se. Seus seios arfam por baixo do vestido simples e uma abertura de botões intrínseca, a cena é dramática e em câmera lenta, ao fundo, Ângela, a música que mais te gritar. O amor. Os dois patéticos como eu. Altivos, orgulhosos e covardes ao mesmo tempo olham-me nos olhos e recuam. São meus os olhos e vêem um sorriso complacente e cansado no rosto de Ângela.

Mas se ainda são jovens e não possuem rugas, se ele a pede em casamente e seus rostos são riscos de desenho cravado em luz dos olhos, se não possuem o delicado horror de ruga que carrego cansado na força da minha expressão ao redor dos lábios, como um palhaço melancólico, cicatrizes antigas de espírito. Já que fui e sou exacerbado, romântico e ébrio empolando a fala, digo que verdadeiramente haverá Ângela de ser e saber o que é esperar que o tempo volte atrás e não seu marido.

Portanto, com paciência e cansadas rugas suas mãos cerzem o vestido puído de noiva. De repente, alguém que não reconheceria de modo algum a observa, no velho espelho de mão, o rosto descascado de sua folhagem em ouro, dos fulgores de antigamente. Consumida. Ela e seu tolo vestido eram ruínas afogadas na fogueira do ciúme, na redundância mesquinha das economias caseiras.

Enquanto isso ele, caricatura do quase-civilizado, gradualmente se esquecia de fazer a barba e do que ia mesmo dizendo e dos nomes de vinhos que sabia. Havia ruminado por tempo demais uma análise modorrenta do que era relevante em sua vida, em sua casa, em suas roupas, em seus amigos, em nos objetos que guardava revistas velhas, cigarros e assuntos chatos que, de repente, ao olhar para a tela em branco, deu-se conta de que não tinha mais nada a escrever.

Que de novo só havia ele de novo sendo o mesmo sempre e outra vez. E lhe vieram rugas, claro, vertigens e sobretudo, a solidão. Vivia vingativamente satisfeito por ainda estar vivo. E era feliz. Engordava. Cresciam bigodes, pensava até adotar um gato.

A mulher, no entanto, ainda estava lá. Translúcida.

Ângela andava ainda na ponta dos pés, costume de menina. Amargurou-se. Para no fim, esquecer-se mesmo das coisas, na justa medida em que as quisesse lembrar. O dia, por exemplo, o liquidificador, quem fim havia?
Varria mãos automáticas a cozinha a cabeça ia vazia então, numa espécie relâmpago, lembrou-se das tardes afinal felizes de mãos dadas rumo ao horizonte amplo e pleno do futuro, de uma só vez num clarão de saudade misturada a saliva azeda e todo tipo de coisa, lembrou-se do quanto era grata, o quanto a vida prometera e ela e a sua juventude de bochechas rosas. Arrogante. Amável animal de longos ânimos e cabelos compridos. De pés muito firmes no chão. Dona-de-casa, afinal, uma mulher bonita.

Mas ele, ela, eu, somos o desequilíbrio da matéria e nos degeneramos no tempo. O que lhe deu foi que quis ir ter com ele imediatamente e sorrir. Depois de tantos anos de costume: dizer-lhe. Antes que se adiantesse o baque seco veio da sala vazou a vassoura de suas mãos e tombaou plácida.

Lá estava ele, um corpo tombado irremediavelmente bêbado asfixiando no chão, uma veia saliente pulsa acelerada no pescoço vermelho. Pára. Paralisada pelo súbito e fulminante. Olha, sem saber para que lado correr, se devia correr, se devia primeiro recolher o lixo da cozinha.

Um comentário:

  1. Ângela Se Casa

    Uma vez que nele coube tudo então fez sentido. Subiu o zíper. Olhou-se no velho espelho descascado, espelho seu fiel escudeiro, pronto pra lhe lembrar o reflexo do amplo rosto branco altivo demente que julgava seu. Colocou sua tiara, subiu aos saltos. Feliz que cabe. A medida é o que não engana. Ela sabe.

    Ângela espera pacientemente do lado de fora do quarto, pacote embrulhado nos braços, sorriso jovialmente entediado. Somos jovens e belos. Mas isso nem é o pior. Ignorava os perigos a espreita, ignorava os seios dela. Afinal, eu, caricatura de um instinto sanguinário, de um homem brutal que se resplandece doce de algum amor para alumiar o peito, voltar a lembrança. Sem poder conter o riso ante a projeção ignóbil. Afinal sabia que meu Amor era Aqui, Aqui que Ângela julgava belo e amplo ao olhar-se no velho espelho dourado. Orgulhosa, covarde. Se não possuem o delicado horror de ruga que carrego cansado na força da minha expressão ao redor dos lábios, como um palhaço melancólico, cicatrizes antigas de espírito. Já que fui e sou exacerbada e romântica e ébria de vinho, empolando a fala, digo que verdadeiramente haverá Ângela de ser e saber o que é esperar que o tempo volte atrás e não seu vestido.

    Portanto, com paciência e cansadas rugas suas mãos cerzem o vestido de noiva. A medida inadequada pra não ser dela. Ângela é esperta e passou então a não comer. E eu tomava toda sorte de líquidos, included myself's. Aquela que se consome a si mesmo e aquela que se consome aos picados, projetando-se. O plano megalomânico como uma projeção saudável. Sócio-planetária, polí-los e fazê-los permitir passar a vibração primordial sem distúrbios. Observa, no velho espelho de mão, o rosto descascado de sua folhagem em ouro. De seus fulgores de antigamente.

    Enquanto isso ele, caricatura do quase-civilizado, gradualmente se esquecia de fazer a barba e do que ia mesmo dizendo, dos nomes de vinho que sabia. Havia ruminado por tempo demais a análise modorrenta do que era relevante em sua vida, em sua casa, em suas roupas, em seus amigos, em seus assuntos, cigarros, delongas e, de repente, ao olhar para a tela em branco, deu-se conta de que não tinha mais nada a escrever. Que de novo só havia ele de novo sendo o mesmo sempre e outra vez. E lhe vieram rugas, vertigens, sobretudo, a solidão. Vivia vingativamente satisfeito por ainda estar vivo. E era feliz. Engordava.

    A mulher, no entanto, ainda estava lá.

    Ângela ainda dava de andar o mundo com o impulso dos pés.

    Mas seu mundo era outro, uma caixinha de museu portátil, recheada de vassouras e sons de madeira talvez, caixinha de materiais que a mantinham fascinada e presa, canarinho.

    E Ela? Após coser o vestido, partiu. Foi ter com os deuses da fúria e do acaso.

    Mandou alguns recados e tudo que ela faz é dormir e sonhar, dormir em tantos lugares e sonhar com aquele em especial, o avesso do cosmo. Dorme. De modo que anda ainda só dançando o mundo todo uma dança astral, desastrada, sólida e simbólica, efêmera e anacrônica, inscrita num diacronismo sintetizado, numa sincronia alienada. Foi. É.

    Ângela amargurou-se. Para no fim esquecer-se mesmo das coisas, na justa medida em que as quisesse lembrar.
    Varria mãos automáticas a cozinha a cabeça ia vaga vazia então, numa espécie relâmpago, lembrou-se das tardes felizes de mãos dadas ao sol rumo ao horizonte amplo e pleno do futuro, de uma só vez num clarão de saudade misturada a todo tipo de coisa, lembrou-se o quanto louvava a vida a vitória da juventude otimista e imbatível. Arrogante. Amável animal de longos ânimos. De pés muito firmes no chão. Dona-de-casa, afinal.
    Mas ele, ela, eu, somos o desequilíbrio da matéria. O que lhe deu foi que quis ir ter com ele imediatamente a sorrir. Dizer-lhe. Então, o baque seco vem da sala vaza a vassoura de suas mãos e tomba plácida. Seu corpo tombado irremediavelmente bêbado asfixiando no chão, uma veia saliente pulsa acelerada no pescoço vermelho. Pára. Paralisada. Olha, sem saber para que lado correr, se devia correr, se devia primeiro recolher o lixo na cozinha.
    (releitura)

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