19 janeiro 2017

Sobre fugir

parte I

Dois dias. Dois dias e tudo seria tão diferente. Difuso, confuso e mais gostoso.

A primeira coisa de que me lembrei quando entrei no carro foi minha mãe, não sei porquê, mas vi seu sorriso através das gotas d´água em meu cabelo suado. A vida suada que ela leva, sempre de tarefa em tarefa. E fui feliz por ela. Agora seria feliz por mim.

O carro acelerou e olhei para ele. O sol fez douradas algumas mexas em seus cabelos, embora eu soubesse quão negros eles podiam ser, no chão de grama. Aquele estranho. Sentia-me como se estivesse saindo de férias e indo ali, passear - o que me deixou realmente feliz, evaporava como a fumaça do nosso papo, dentro do carro, íamos buscar alguns víveres para o acampamento, na cidadezinha mais próxima. Os outros nos esperavam.

Enquanto o carro ia a não sei quantos por hora, o som estridente dos Stones, Sympathy for the Devil, enchia meu cérebro e ele falava atrás daquela cortina de fumaça e eu ouvia, ria, fumafalava também.

Entendi, mais tarde, que não haveria outro lugar no mundo em que eu quisesse estar.

Podia sentir a vibração empolgante de André através do jeito sagaz e espirituoso de sorrir de quem está realmente feliz. Um pinto no lixo, como dizia minha mãe. Um pinto no lixo também estava eu, entre os estranhos, esquisitos, os que têm sede de birita e liberdade, posto que herdarão os reinos do Crepúsculo.

Estava atrás dessa profecia. De sentir com as mãos suadas, de doer o pâncreas, de me riscar e arriscar, de botar meu corpo como última aposta na roleta-russa da vida.

Chegamos já era quase noite. Ele me ajudou com a barraca e procuramos juntos galhos e toras de madeira para nossa fogueira.

Mais tarde, anos e anos depois, eu perceberia que desde o início ele já me ensinava, em cada gesto, em cada olhar, uma lição e eu também o ensinava com meu ímpeto de mergulhar de olhos tão fechados na correnteza incerta da chuva.

Ele nunca se chegou a mim. Era sempre eu, com uma sede raivosa, doce no final, que o procurava para conversar. Algo que de fato eu não compreendia. Nem fazia questão. Eram apenas os dias, a janela do carro, a música radioativa e estridente. Eu era a Deusa e Súdita da Deusa, eu era uma pequena capela onde se podia ficar em silêncio e dobrar os joelhos e ele era o meu milagre. O sacro-profano socando o mundo na cara, cuspíamos as sementes de tangerina na terra. Algo sempre brotava.

Dava para ouvir a cachoeira da trilha. Dava para ouvir meus batimentos cardíacos escorrendo com a água.

Finalmente, acendemos a fogueira. Na verdade, eu e André caminhamos silenciosos procurando por lenha. Depois, André a acendeu. Eu apenas me aqueci ao redor daquele fogo morno e confortável. Cantamos, tamboreamos e louvamos aos céus àquela noite doce, sem pernilongos, cheirando à canela queimada e com o sabor de licor de jabuticaba, que bebíamos.

A lua já ia alta e redonda no céu e eu estava eufórica. Levantei descalço. Ri e disse que precisava dar uma volta. No acampamento, alguns amigos já haviam ido dormir em suas barracas, porém, eu, André e Pedro ainda estávamos lá, quando me afastei, vi o contorno flamejante deles diminuindo. Procurei por um longo momento os olhos de André, mas ele não os tirou do violão. Pedro, porém, olhava fixamente para mim. Mergulhei na trilha procurando um bom lugar para fazer xixi, ouvia  a melodia do violão abafada.

Então, Pedro surgiu.

Apertou meus braços com uma força improvável e desnecessária. Também estava fugindo -não sei bem do quê, mas estava - não me importavam os motivos dos outros. Pedro era o melhor amigo de André. E eu nem sabia ao certo quem era aquele guri. Nem ele, nem eu. Então, ele afrouxou os dedos em meu braço mas seu toque permaneceu, gentil. Queria saber se eu estava bem. 

Senti-me triste, de repente, e curiosa e faminta e não entendia bem o porquê.

André era bom em acender fogueiras e construir um abrigo e preparar nossa janta. Mas Pedro era bom em seguir garotas bêbadas.

Voltamos à fogueira, tomamos o penúltimo gole da última garrafa de licor, mas isso me pareceu irrelevante, não suportaria outro gole sequer, sorria, sorria para tudo que diziam como uma perfeita idiota, mas eles riam também, ríamos todos tolos e era tão bom, como se fôssemos um hábito saudável ao sábado, praticado durante muitos anos.

Pedro puxou minha mão. Nadamos nus na cachoeira sem nos tocarmos. E, após o choque térmico, fumamos e conversamos baixinho. Tremia muito, dentro da minha toalha. Depois, voltamos molhados, com frio e em silêncio para nossas barracas. A bebedeira havia desaparecido completamente. Eu mal fechei os olhos e o céu deu à luz um novo dia.

Na noite seguinte,  André procurou por galhos e madeira sozinho, recusou minha companhia, e acendeu a fogueira com um olhar triste de compreensão. André, tão familiar e tão estranho, tão próximo e tão distante, absorto em elucubrações e uma atitude taciturna. Eu ansiava por André em meu íntimo, em meu coração, mas ele era um muro sem brechas. Por não poder beijá-lo compensei minha frustração bebendo exageradamente o licor de jenipapo que compramos no dia anterior, naquele passeio de carro em que me senti tão confortável e feliz ao lado dele. 

Quando notei, estava cambaleando rumo à cachoeira e me vi nadando com Pedro, novamente. Deixei minha toalha cair mecanicamente, desnudando-me. Era realmente uma ideia tresloucada e sedutora, e me atirei da pedra para o rio escuro.  Deixei que o frio me invadisse, os cachos macios dos  meus cabelos, enroscando-se em mim. E meus lábios tremiam, o frio cobriu meu corpo quente como cristais de gelo a cobrir uma viga de ferro em brasa.

De qualquer forma, já havíamos feito isso antes. Na água, ainda de olhos fechados, mergulhamos. Mas dessa vez, ele se aproximou mais, com um olhar voraz de fome, sentia sua respiração quente e ofegante em meu rosto, sem qualquer cerimônia, deslizou seus dedos para dentro de mim, girou-os suavemente, sentindo cada cavidade íntima. Ao mesmo tempo, massageava-me com muito cuidado. Meu corpo arqueado na pedra. Resistindo e cedendo, tremendo, sobretudo.

Entre meu ofegante querer e sua resoluta vontade, cada pedaço de pele, meus olhos, tremeram até as lágrimas. Ele queria sentir até o sabor de minhas pupilas.
Eu o comprimi com minhas mãos, querendo-o ainda mais intensamente, sua língua deslizava lenta e rapidamente, dançava roque, balada, sonata em fuga. Enlacei minha perna a sua cintura e sugava seu gosto e seu cheiro com todas minhas forças, como se a sua saliva e aquele resfolegar fossem um banquete delicioso oferecido a um animal faminto.

Gozar não diz nada sobre o que senti. Sobre como me senti. A lua cheia simplesmente aumentou de tamanho, eu podia jurar. Mas é por não haver um dizer, que fiquei em silêncio, abraçada ao meu próprio corpo, depois, flutuei nas águas gélidas da madrugada e foi assim que conheci a Paixão de Pedro. 


Voltamos de mãos dadas. O mundo estava em silêncio. Exceto por aqueles sons longínquos de sapos, cigarra, cigarros, e o dedilhar delicado de André ao violão, nos abraçamos até o amanhecer. Após um intervalo de dois dias, André, finalmente, olhou para mim.


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