30 junho 2017

Sobre fugir

Parte III


São quase duas horas da manhã, por alguma razão, não consigo dormir.

Ouço uma batida na porta. Ele entra, agitado, forçando um sorriso. Ofereço água. Permanecemos imersos em um silêncio aflito. Algo se comprime em meu peito, não sei porquê, talvez seja o horário. O olhar dele desvairado, despejando tudo em mim. 

- Vou para Londres. Viajo semana que vem. 
- Como assim? 
- Londres. Já pensou que legal? Estou com um puta frio na barriga. Vim... me despedir de você. Trouxe seu vinho favorito. Tava caro para cacete na conveniência. Mas você merece.
O buraco negro no estômago, o mesmo do dia do vestibular, quando conheci André, estava ali novamente.
- Como assim você vai se mudar para Londres?
- Ah...

Não sabia ao certo por onde começar.

- E quanto tempo você pretende...
- Não sei. 
- Por que você me falou só agora, André? Tão pouco tempo para organizar uma festa de despedida e...

Ele deu de ombros:

- Sei lá. Você tem um cigarro? Olha, desculpa acordar você essa hora é que...
- Tudo bem. Eu estava acordada.

Fumamos e bebemos água em silêncio.

Então, André vai embora. O pássaro mais bonito da gaiola vai voar. Eu que sou tão a favor de pássaros e de janelas. Logo não saberei mais onde ele está, nem dentro nem fora de mim. Talvez um dia esteja na Nova Zelândia, cultivando uma linda família, pensei com rancor. Por quê? 

Gostaria de fazer algo, além de tomar água, muito concentrada no fundo do copo. Éramos apenas amigos e, apesar de o amar profunda e intensamente, eu não era sequer uma razão para ele ficar.

- Acho que agora entendo, disparei.
- Entende o quê?
- Aquele dia, na cachoeira, quando acampamos.
- Nossa, calma. Posso colocar uma música?

Levantou-se num pulo do tapete. Falávamos muito sobre literatura, artes plásticas, música e política, e sobre nossos livros preferidos, nossos medos de infância, jogos, notícias. Mas nunca sobre nós dois, sobre o que aconteceu aquele dia. Começou a tocar "Living on the Edge".

Achei que ele deixaria o assunto passar, mas chegou bem perto de mim, olhou no fundo dos meus olhos e perguntou:
- O que você entende agora?
- Ah, aquela noite, você estava tocando violão hipnotizado com a fogueira. Eu chamei você, com os olhos, quase implorei para ir comigo. Você não olhou, não sei. Então, Pedro me seguiu, e nós, nós transamos, namoramos, ficamos praticamente casados.
- Ah, ele gostou realmente de você, desde a primeira vez que te viu. 
- Você sabia, então.
- Evidente que sim.

Estava exasperada.

- Gostaria muito que você tivesse ido comigo, de que tivesse sido você. 

Ele desviou os olhos. Desviou o rosto. Parecia tão distante como se estivesse em outra dimensão. Como se, de repente, não falássemos a mesma língua. Ouvia a música e cantarolava. Não conseguia nem se sentar. Compreendi, enfim, que o assunto estava encerrado. Para sempre.

- O que você vai fazer lá, afinal?
-  Ah, consegui uma bolsa de estudos. E vou morar com... uma garota. Nós meio que estamos apaixonados. 
Não pude dizer mais nada. A água parecia ter cristais de aço arranhando a garganta. Tudo era tão implacável e cristalino. Dei o último gole, então, acabou-se. Não havia mais nem uma gota de água sequer no copo.

- Tem falado com o Pedro?
- Ah, sim. Ele vai voltar a morar aqui, sabia?
- Olha só, ele vem, você vai.


André sorriu mostrando muito os dentes.

Não entendi porque ele invadiu minha casa, às duas da manhã, para me bater e esmagar com seu adeus. Como foi que as coisas deram tão errado assim? Ah, sim, porque eu sou a sua maldita melhor amiga. E ele quer se despedir.

Queria berrar: você sabe que eu te amo, né, seu filho da puta? Mas isso poderia não ser verdade. 

André sempre me foi um apego gritante. Mas algo tinha de acontecer, afinal. E era sempre eu que ficava, enquanto as outras pessoas iam. Eu deveria me chamar Pedra, imóvel na praia, sem saber dos amores que a vida me trouxe e eu não pude viver. Rá.

Gostaria muito de saber se Pedro sabia. Se sabia sobre mim e André, aquele dia, no apartamento. Nossa única vez. 

- Então, você veio para cá, duas da manhã, para uma despedida?
- Isso. E também porque não conseguia dormir, nem fodendo.

A palavra fodendo ficou ecoando em minha cabeça, e tinha o mesmo sabor de sexo do André. Quantas e quantas vezes não degustei André em minha imaginação? 

- Talvez fodendo, você durma, ri sarcástica.

Ele sorriu de volta e vi seu olhar faiscar. Ele também se lembrava, afinal. E me levantei bruscamente. Meus cigarros haviam acabado. Podia ficar sem chá, sem comida, até sem café. Mas...

- Meu cigarros acabaram. Vou ter de enfrentar esse frio tenebroso. Bom, você já enfrentou para vir até aqui. Bora? 

Semana que vem ele estará em Londres, pensei, morando com outra mulher. Enfim, estará casado. Eles "meio que estão apaixonados", desdenhei. Então, imaginei uma inglesa inteligente, bem humorada e linda. Ela se tornará uma grávida saudável, sempre sorrindo de forma honesta e gentil, genuinamente feliz e adorável com sua linda família.

- Você vem ou não vem comigo? Perguntei.
- Claro.

As rajadas de vento eram suaves e frias. Minhas bochechas queimavam porque ainda estava naquela de fodermos como uma bela despedida. Sabia que isso me deixaria muito deprimida. E sabia que André sabia. Eu, por minha vez, não conseguiria convencê-lo a fazer nada que pudesse me magoar. Ele cantarolou "Janie´s got a Gun". Por que aquela noite absurda tinha que soar como música?


Indecifrável André. Não o entendia de forma alguma. Um estranho. O estranho que me ajudou quando eu estava perdida, há uma década, prestando vestibular para entrar na faculdade.

- Então, você vai se casar em Londres e eu provavelmente não serei nem convidada.
- Certamente quando eu me casar, você será convidada. Isso se eu não me casar com você. Ele me envolveu num abraço, sorrindo largo e debochado.


Maldito. Eu ri. Alto demais.

Ele poderia ter invadido minha casa hoje, de madrugada, para me pedir em casamento e eu aceitaria. Poderia ter me convidado para ir a Londres morar com ele e nós teríamos um monte de cachorros, jardins e seríamos um fucking happy couple, e...

- São nove e setenta. 
- Ah, droga, vamos pegar umas cervejas? Não eram nem três da manhã. A moça no caixa pousou seu olhar no meu com ares de indiferença e reprovação. 

Eu ria de tudo que ele falava. André era muito engraçado. Mas eu sei que a noite só tinha tanta graça porque ele ainda estava comigo, eu ainda estava feliz e ainda tinha mais algumas horas até que ele se fosse para sempre, desaparecendo nas nuvens, dentro de um avião.

- Nossa, você está realmente pensando em dar uma festa. Não tem muita cerveja aí, não? perguntou André.
- Estou com sede, respondi secamente.

Voltei carregando as sacolas, meu fardo, pensei. Então, André as arrebatou de mim. Pareciam muito leves em suas mãos, o tilintar de cascos. Retirei uma da sacola e sorvi realmente com muita sede, queria me diluir naqueles goles o máximo que pudesse. Acendi um cigarro e o enfiei na boca deliciosa de André.

Sorriu com o cigarro penso na boca.

Aqueles lábios mestres em chupar tudo de forma graciosa, precisa e eficaz. Lembrei-me de Pedro enfiando seu cigarro em minha boca trêmula, na pedra gelada, após o banho de cachoeira...
Lembrar, lembrar era uma grande merda. 

No apartamento, Elvis espalhava sua voz e seu swing para as paredes. God bless as playlists da internet e seus ímpetos randômicos. Eu queria ouvir Simon e Garfunkel. Queria muito, mesmo, e pedi em voz alta porque o André sabia tocar.

Se não tivesse pedido, ele teria continuado a dançar comigo, lentamente, rodando no tapete que adorávamos, com o rosto bem colado ao meu, seu calor irradiando. 
Mas tudo era uma grande ilusão. André, você é meu melhor amigo. Eu te amo. Tinha certeza, agora. E o deixo ir porque o amo. 

Não tocou no violão, embora eu insistisse. O que ele realmente estava planejando - e isso ficou bem claro quando colocou a música - era botar pra foder comigo e aumentou o volume de London Calling no último, implorei com os olhos, quase gritei, mas... mas na verdade, eu não disse nada. Fiquei ouvindo e me lembrando das festinhas da faculdade. Tudo era um grande looping. Estava entediada e triste, afinal. 

Continuei bebendo minha cerveja tentando não me importar com o eufórico e semi bêbado André cambaleando na sala. 

Desde que eu e Pedro terminamos, ele aparecia em casa de vez em quando. E sentava no tapete, ouvia música ou tocava violão. Falávamos de música, víamos filmes e séries, pedíamos comida  por telefone e sempre tinha aquele momento estranho de tensão, em que eu queria engolir seu sexo, comprimir seus lábios nos meus, entregar tudo que sempre quis dar a ele.
E era nesse momento que ele se levantava rápido como se tivesse levado um murro. E ia embora. Sumia por dias e quando a ferida estava quase seca, cicatrizando, ele aparecia de novo, sem avisar, claro. Vinha como um anjo maligno sedutor sorrindo e me trazendo vinho, bombom, cerveja, chá de Amsterdam.
  
Estávamos na metade do caminho. Quanto mais a hora dele partir se aproximava, mais depressa engolia a angústia em seco, tentando lubrificar minha loucura com excesso de cerveja.

- Preciso dizer uma coisa, caso você não tenha percebido, ele falava com ar de deboche e ironia.
- O quê?
- Pretendo passar a noite aqui com você e o dia todo amanhã. Então, pode beber mais devagar ou até vomitar no tapete. Espero não estregar seus planos e tal, mas você será obrigada a ficar por aqui comigo. 


Eu era um monte de cinzas, cinzas coloridas. Estava mais aliviada, bebia mais devagar. Cada gesto meu parecia insuficiente e bobo. Falamos de tantas coisas, realmente lindas, leves, engraçadas, mas o silêncio parecia muito maior. Mais denso que o ar e por mais que eu tentasse vocalizar algo o som sempre morria alguns metros a frente.

Não sei como aconteceu. Mas nos beijamos.

Na verdade, eu sei. Sei ao meu modo, mas não imagino o que aconteceu com ele. Pena? Tesão? Colocou seu desejo egoísta de trepar acima da minha saúde mental? Mas será que ele realmente sabia que ia foder completamente com meu juízo? Talvez não.

Eu só sei que me sentia lânguida, sensual. Nosso olhar ficou demorado, o álcool nos fazia rir demais, a harmonia e sincronia de repente se transformaram em um beijo sufocado, na boca, que ele deu em mim.
Em segundos eu estava sem calcinha, subindo e descendo lentamente em ondas de calor, ele dentro de mim, bem fundo, seu cheiro agridoce, morno, os dedos dele apertando com força minha coxa, o abdômen contraído. Sussurrei "te amo" em seu ouvido, enquanto gozava, minhas lágrimas e minhas pernas escorriam. Trepamos a noite toda e depois o dia todo, e no dia seguinte, com intervalos apenas para fumar, comer, beber água. 

Eram dez horas. Estávamos na sala, seminus. Ele beijou minhas costas, minha nuca, levantando meu cabelo segurando forte, meu corpo arrepiado completamente. E me prensado contra o sofá foi me abrindo. E lá estávamos grudados na sala, suados na cama, molhados no chuveiro. Devoramos um balde de yakissoba e vimos Star Wars até eu dormir no sofá, no peito dele. E o dia que passaríamos juntos se tornou um fim de semana inteiro.

André teve a decência de ir embora apenas  quando achou que eu estivesse dormindo, no domingo. Ele me beijou de leve, na testa. Levantei-me com uma facada no peito. E o vi saindo, diluindo-se na penumbra da rua. 

Minhas pernas perderam a força. Ele venceu porque eu o amaria para sempre e estaria para sempre com seu cheiro e suas músicas na cabeça. Não importaria quantas existências se passassem. 

Ele se foi. Não deixou nenhum resquício de que esteve aqui. Olhei para a garrafa vazia do vinho que ele trouxe, caída no lixo. Olhei para o relógio.

Eram quase cinco horas da manhã e eu não conseguiria mais dormir.

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